Em seguida, entra em cena Arthur Azevedo, que fez da crônica, do conto, assim como do teatro — nele o diálogo e a narrativa teatrais incorporaram-se ao enredo e escrita  contísticas; e vice-versa — os mais pungentes cenários de prática do humor. Além disso, ou por isso mesmo, no conto foi  um inovador, inventando um gênero ficcional: o conto-comédia, expressão cunhada por ele, mercê da oralidade e o coloquialismo introduzidos em sua linguagem narrativa, que explorando ao máximo a ironia crítica, a sátira, o sarcasmo, o anedótico, a paródia, e mais do que tudo, certa malícia, uma espécie de "humor malicioso" que permeia as entrelinhas, incorporando o mais autenticamente possível o linguajar do homem comum. Nesse sentido, o contista Azevedo interagiu — para usar um termo de hoje — seus protagonistas e personagens com os leitores, estes integrados à perfeição com aqueles: pouquíssimos escritores ficcionais, nem mesmo Machado, criaram e mantiveram por toda a sua produção tamanha intimidade com o leitor, como um rito "sem-cerimônia" de identificação e confraternização solidária, numa familiaridade plena com os personagens, estes traçados e desenhados à imagem do homem comum habitante da cidade do Rio de Janeiro na época, retratado nas histórias sem disfarces, nuances, sutilezas ou retoques (e retoque, muito menos artifícios narrativos, estilísticos, temáticos, tramáticos, de escrita ou de linguagem, foi um expediente ou "técnica" de que Arthur Azevedo jamais se valeu...). Os dois exemplares da irresistível verve humorística de Arthur Azevedo que aqui se oferecem são da coletânea Contos efêmeros, publicada originalmente em 1897 (Typographia C.R.C., Rio de Janeiro).  [Mauro Rosso]

 

 

 

 

 

 

Os charutos

 

No último sábado tive a satisfação de encontrar a minha espirituosa amiga dona Henriqueta na rua dos Ourives, quando ia entrar em casa do Chappot Prevost, que tem a honra de ser o seu dentista.

 

— Ainda bem que o encontro. Suba. Preciso falar-lhe.

 

Subimos.

 

O Chapot Prevost estava, como sempre, ocupado, e a minha espirituosa amiga teve que esperar na elegante saleta do mais amável dos nossos cirurgiões dentistas.

 

— Tenho aqui na ponta da língua uma história para os seus leitores.

 

— Sim?

 

— Ah! mas é preciso escrevê-la com muito cuidado. Foi uma amiga minha que me contou. Não creio que seja inédita, mas é engraçada.

 

— Ouçamos.

 

E dona Henriqueta contou-me a história que vou reproduzir. Enquanto contava, ria-se a perder, mostrando uns dentes belíssimos, que não justificavam absolutamente a sua presença na casa do Chapot Prevost. Não sei porquê, em geral, as senhoras que vão aos dentistas têm muito bonitos dentes.

 

Vamos ao conto. Se algum dos leitores já o conhecer, tanto pior para mim.

 

*

 

Foi um dia de verdadeiro júbilo em casa do barão e da baronesa de Cajapió, nas Laranjeiras, aquele belo domingo em que o doutor Salles Borba lhes pediu a Isabelinha em casamento.

 

As três filhas mais velhas estavam casadas, e muito bem casadas. A Isabelinha era a última, e o doutor Salles Borba, engenheiro distinto, muito novo ainda, bem educado, viajado, bonito, elegante e quase rico, era um partido como não se encontram muitos.

 

A Isabelinha aceitara o noivo com entusiasmo; não que o amasse, porque, educada nos mais severos princípios, não tinha ainda prestado atenção a nenhum homem; reconhecia, entretanto, naquele belo moço — tão correto nas maneiras como nas vestimentas — alguma coisa que o tornava superior à maior parte dos indivíduos que ela encontrava nas salas aonde os pais a conduziam com a mal disfarçada. intenção de lhe procurar marido.

 

*

 

O casamento realizou-se com toda a pompa.

 

A pedido da baronesa, o doutor Salles Borba e sua esposa ficaram morando no palacete das Laranjeiras, que tinha acomodações para abrigar à vontade duas numerosas famílias.

 

*

 

Quando o último convidado se retirou, e os  noivos entraram na misteriosa alcova, que docemente lhes sorria entre sedas azuis e rendas brancas, o doutor Salles Borba tirou da algibeira um magnífico havano, acendeu-o na vela cor-de-rosa que ardia num esplêndido castiçal de ouro, e pôs-se a fumar.

 

A Isabelinha empalideceu de despeito. Pois que! ele, o seu noivo, fumava dentro da alcova nupcial, na própria noite do casamento! ...

 

Aquele charuto inoportuno pareceu-lhe — e com razão, digamos — uma brutalidade inverossímel, uma grosseria imperdoável.

 

Na realidade não se compreende que um cavalheiro da estofa do doutor Salles Borba tão viciado estivesse, Deus meu! que não sacrificasse o seu charuto à a mais elementar cortesia.

 

Acresce que, instruído como era, naturalmente havia lido a Fisiologia do casamento, e devia saber que o autor meteu os fumantes no rol dos "predestinados". É verdade que isso apenas prova que Balzac... não fumava. 

 

*

 

Mas não percamos de vista os nossos noivos.

 

Os leitores, e principalmente as leitoras, vão ficar  indignados ao saber que o doutor Salles Borba levava ainda o maldito charuto entre os dentes, quando se dirigiu para o tálamo, onde o  esperava a Isabelinha trêmula e palpitante — e com o charuto entre os dentes, fumegante e rubro, se deitou ao lado da melindrosa donzela, que não se pôde conter:

 

— Tenho que lhe pedir um grande favor, meu  amigo.

 

— Tens que me dar uma ordem, meu amor.

 

— Abstenha-se de fumar no nosso quarto, sim?

 

— Por quê? Incomoda-te o meu charuto?

 

— Não, não me incomoda, mas... não gosto, não acho bonito...

 

O engenheiro não respondeu; teve apenas um ah muito seco, pôs o  havano de lado... e daí  a alguns minutos dormia profundamente.

 

*

 

E durante três noites, naquele ninho, não dirigiu a palavra a Isabelinha. Fora dali, de dia, na sala, no gabinete, no jardim, à mesa do almoço ou do jantar, era de uma amabilidade, de uma solicitude sem limites; mas à noite, no leito, esperava que sua mulher se deitasse, deitava-se ao lado dela, fechava os olhos, adormecia, e só despertava no dia seguinte, quando o sol entrava timidamente na alcova.

 

Na quarta noite a Isabelinha interpelou-o:

 

— Borges, por que você aqui no quarto não conversa comigo?! 

 

Ele sorriu:

 

— Ah! Isso...

 

E acrescentou com resolução:

 

— Ouve; talvez não acredites, mas é a pura verdade: à noite, quando estou deitado, não me é possível conversar sem primeiramente fumar um charuto.

 

Ela mordeu os beiços e não disse mais nada.

 

Adormeceram ambos.

 

*

 

No dia seguinte, pela manhã, Isabelinha foi ter com a mãe e tudo lhe contou.

 

— Que estás dizendo, minha filha? exclamou a baronesa.

 

E, dando-lhe uma nota de cem mil réis, acrescentou:

 

— Aqui tens dinheiro: manda imediatamente comprar uma caixa de charutos para teu marido, e o  mesmo portador que traga duas para teu pai, que há muito tempo emudeceu.

 

*

 

Dona Henriqueta, quando acabou de me contar essa história, pediu-me que a esperasse para acompanhá-la ao ponto dos bondes no largo da Carioca.

 

Esperei pacientemente que o Chapot Prevost lhe examinasse as pérolas (porque, creiam, os seus dentes são verdadeiras pérolas) e, acabado o exame, tive o prazer de levá-la até o  bonde.

 

Já ela estava sentada quando de repente:

 

— Ah!  e eu que me esqueci completamente...

 

— De quê?

 

— E note-se que não vim à cidade para outra coisa! — Meu marido faz anos hoje, e não lhe devo um presente!

 

— Ainda há tempo.

 

— Qual!  já é  tarde e  chove tanto... Se eu pudesse arranjar alguma coisa aqui mesmo no Largo da Carioca...

 

— Pode, por que não? Seu marido não fuma? Está ali a charutaria do Machado, que...

 

A minha espirituosa amiga deu um muxoxo e voltou o rosto para sorrir à vontade.

 

O bonde partiu.

 

 

Incruento

 

Vamos lá! disse a minha espirituosa amiga dona Henriqueta — vamos lá! o  senhor às vezes escreve contos que uma senhora não pode ler sem corar...

 

— Ora essa! peço-lhe que me cite um só desses contos!

 

— "A filha do patrão", por exemplo...

 

— Confesso-lhe, dona Henriqueta, que não me lembro absolutamente do assunto.

 

— Pois eu avivo-lhe a memória: trata-se de uma rapariga, filha de certo comendador abastado, que ama um rapaz sem posição nem fortuna.

 

— Ah! já sei: o rapaz pede-a em casamento, e o comendador, por única resposta, põe— no a pontapés no olho da rua.

 

— O namorado rapta a pequena.

 

Dois ou três dias depois de raptada, a menina volta para casa do pai, acompanhada pelo sedutor; calculam ambos que, naquelas condições, o velho não tem outro remédio senão abençoá-los e casá-los.

 

— Vejo que o senhor se lembra perfeitamente do que escreveu.

 

O  pai deita pela segunda vez o sedutor pela porta fora: prefere que a filha fique desonrada a casá-la com um valdevinos.

 

— Então? que inconveniência tem esse conto?

 

— Até aí nenhum; o final, porém, é terrível: o comendador convence a pequena de que deve ser esposa do seu primeiro caixeiro, e ela deixa-se convencer.

 

— Vai então o velho, chama de parte o caixeiro, diz-lhe que está satisfeito com os seus serviços, dá-lhe  interesse na casa e propõe-lhe o casamento; é isso?

 

— É isso, é; o  moço fica atônito diante de tão inesperadas fortunas; mas o futuro sogro...

 

— Previne-o de que a filha não é virgem.

 

— Ora vejam se isto são coisas que se escrevam!

 

— O primeiro caixeiro abaixa a cabeça, abre um sorriso humilde, encolhe-se e diz: — Oh, patrão, ainda que fosse não fazia mal.

 

— 0 cinismo com que o senhor repete essa brejeirice, aqui, diante de uma senhora!

 

— Valha-me Deus, dona Henriqueta! vejo que  infelizmente vim encontrá-la numa terrível disposição de intolerância. Esse conto não perverte ninguém; é pura e simplesmente uma pálida pintura do que se passa em certo meio social.

 

— Ah! se  o senhor entende que pode descrever tudo quanto se passa na sociedade, arrisca-se a ser denunciado à Justiça por ofender a moralidade pública.

 

— Pois saiba, dona Henriqueta, que tenho outro conto em continuação daquele.

 

— Sim? E como se intitula?

 

— "Incruento".

 

— Que mau título!

 

— É um título como outro qualquer. A ação desse conto passa-se no dia seguinte ao do casamento do primeiro caixeiro com a filha do patrão.

 

— Conte-me isso, mas pelo amor de Deus não me faça corar...

 

— Oh, dona Henriqueta, pois não tem aí o  seu leque?

 

— Vamos lá!

 

— O  guarda-livros do comendador era um sujeito quase espirituoso; tinha fama de literato por ser o autor de uma célebre paródia dos Ciúmes do bardo, que há vinte e tantos anos correu de mão em mão da rua Direita a Prainha; foi até certo tempo colaborador assíduo do Almanaque  de lembranças, e não havia outro como ele para fazer um puf carnavalesco, ou satirizar em quadrinhas qualquer honrado negociante que, a instâncias da senhora, adquirisse um título nobiliárquico. Mas a grande reputação literária do guarda-livros provinha principalmente de uns velhos alexandrinos de sua lavra, intitulados "Combates de amor", alexandrinos que na praça toda a gente sabia de cor.

 

— Bom; como já lhe conheço as manhas, meu amigo, adivinho que esse poeta vai ser o amante da mulher do primeiro caixeiro.

 

— Não adivinha tal! Esse poeta era considerado um oráculo na casa comercial do comendador. Todos, patrões e caixeiros, o consultavam amiudadas vezes. Ele era sempre o árbitro nas frequentes questões gramaticais e filosóficas suscitadas entra o pessoal do armazém e o do escritório. Todos ali reconheciam a sua enorme superioridade intelectual.

 

— Admira que nunca passasse de guarda-livros.

 

— O primeiro caixeiro era uma vítima da erudição desse homem, que tinha o especial gostinho de empregar na conversação vocábulos cuja significação o outro não entendesse, só para vê-lo abrir e folhear sofregamente um dos cinco grossos volumes do dicionário de Frei Domingos Vieira, enfileirados numa velha estante do escritório, entre o Código Comercial e o Manual Mercantil. Hoje era um apanágio, amanhã um corolário, depois um fastigio, ou outra qualquer palavra menos usual, que obrigavam o pobre diabo a essas consultas, aliás louváveis, ao lexicógrafo.

 

— Aonde quererá o senhor chegar com isso?

 

— Tenha um pouco mais de paciência: vou terminar.

 

No dia seguinte ao do casamento, o primeiro caixeiro (que já então era sócio) apresentou-se no escritório com um sorriso de triunfador. Todos os empregados o cumprimentaram com muita efusão: apenas o poeta dos "Combates de amor", muito entretido com o seu "Diário", não deu pela presença dele.

 

— E o noivo?

 

— O noivo aproximou-se do guarda-livros, e impingiu-lhe uma frase que trazia já estudada: — Sr. Santos (o poeta chamava-se Santos), tive também o meu combate de amor — Não duvido, respondeu o Santos sem levantar os olhos do "Diário", não duvido, mas foi um combate incruento.

 

Dona Henriqueta abriu o  leque....

 

— Incruento!  pensou o noivo; que diabo será incruento? — E atirou-se ao terceiro volume do dicionário de Frei Domingos Vieira.

 

— Pobre homem!

 

— E leu: "Não cruento, em que não há efusão de sangue".

 

*

 

Dizia o frade alguma coisa mais; o noivo, porém, dispensou o resto, fechou o livro, saiu do escritório, e nunca mais quis graças com o guarda-livros.