I

 

         Joaquim de Montezuma de Carvalho (1928-2008), escritor barroco perdido no século XX, nunca se rendeu à modernidade. Escreveu numerosos artigos, que hoje estão espalhados por jornais e revistas de Portugal, Brasil, África lusófona e até do mundo hispânico, além de vários livros. Os últimos, que se saiba, são Do Tempo e dos Homens — Da historia literária à historia da cultura, v.1 (Lisboa: Instituto Piaget, Divisão Editorial, 2007) e  Manuel Bandeira — Cartas a Joaquim de Montezuma de Carvalho (São Paulo: Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes,  2007), livro que teve tiragem limitada de 50 exemplares, distribuídos entre amigos e bibliotecas.

         O advogado criminalista Montezuma, a princípio, escrevia à máquina suas petições, cartas e artigos que distribuía pelo mundo a centenas, mas parece que nunca se aproximou de um computador. Da Internet nem pensar. Era seu filho quem entrava na rede e capturava e imprimia seus artigos que, nos últimos anos, eram publicados no extinto suplemento Das Artes Das Letras do jornal O Primeiro de Janeiro, do Porto, às segundas-feiras. Não tinha paciência para aguardar a chegada do exemplar impresso pelo correio. E o filho, também advogado criminalista, era quem lhe fazia esse favor na madrugada de domingo ou na própria segunda-feira.

         De preferência, escrevia mesmo à mão, com caneta-tinteiro, porque entendia que assim lhe saíam melhor os pensamentos. Mas, nestes tempos apressados, seus textos constituíam o "terror" das redatoras do suplemento do Primeiro de Janeiro, que tinham de copiá-los no programa Word do computador, como uma delas me confessou, certo dia de novembro de 2005, quando passei pela antiga redação que ficava à Rua Coelho Neto, no centro do Porto.

         Sua letra era esmerada de quem escrevia com vagar, mas, de repente, como se impulsionada por um afã que lhe atravessasse o pensamento, tornava-se pouco legível — por isso, muitas vezes, saíam algumas impropriedades no texto impresso porque quem o copiava certamente não o fazia com a devida atenção ou porque não entendia alguma nuance da escrita.  Por isso, as fotocópias que costumava enviar aos amigos vinham minuciosamente revisadas com numerosas correções.

         Sem contar que, com o texto, seguiam muitos retalhos de jornais ou revistas fotocopiados que ele, invariavelmente, recolhia na Biblioteca do Exército, em frente à estação ferroviária de Santa Apolônia, a poucos metros de seu apartamento, na Rua dos Remédios, no bairro da Alfama, em Lisboa. Seus envelopes pardos sempre chegavam recheados de muitos recortes — os quais, traziam muitas anotações às margens — e com um pedido inevitável: a devolução dos selos para a coleção do neto. A mim teve sempre a espontânea preocupação de enviar os recortes de meus artigos que saíam no Diário dos Açores.

         Para homenageá-lo, o Boletim Cultural Póvoa de Varzim, v.42, 2008, da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, terra natal de Eça, publicou uma de suas últimas colaborações, "A razão por que Eça foi para Paris", da qual fez separata que distribuiu para alguns de seus amigos e admiradores. É um texto do começo de 2005, que Montezuma encaminhou à Dra. Maria da Conceição Nogueira, diretora do Boletim Cultural, a 21 de janeiro de 2008, a título de colaboração, porque àquela altura a doença que o vitimou já o impedia de escrever textos mais longos que o bilhete que acompanhou o material enviado à redação. Montezuma morreu a 6 de março de 2008.        

                                               II

            O texto publicado postumamente foi definido por Montezuma como uma colagem porque traz dois recortes de jornais e duas cartas de Eça de Queirós (1845-1900) que ele extraiu da revista Ocidente, de Lisboa (nº 56, vol.XVIII, 1942), além de suas observações à mão, como se pode constatar porque o Boletim Cultural fez também a reprodução do original do autor. Montezuma começou por destacar uma caricatura rara de Eça de Queirós, desenhada por Emílio Pimentel, que encontrou no livro Memórias do professor Thomaz de Mello Breyner, 4º conde de Mafra 1869-1880 (Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1930), em que se vê o escritor vestido à moda parisiense como um dândi da belle époque.

         A reprodução era só um mote para Montezuma lembrar que, como anunciava notícia reproduzida do Diário dos Açores, de Ponta Delgada, de 15/1/2005, Eça de Queirós seria homenageado em Neuilly-sur-Seine, em Paris, na Praça Saint Jean Baptiste, com a colocação de um busto, na presença de autoridades francesas. Como se sabe, foi naquela localidade que Eça exerceu as funções de cônsul de Portugal em Paris, entre 1888 e 1900, data de sua morte.

         Montezuma reproduz também outra notícia do Diário dos Açores, de 8 de fevereiro de 2005, que dá conta da inauguração do busto, com a presença de cerca de duas centenas de portugueses emigrantes, todos orgulhosos com o fato, embora, segundo o jornal, quando questionados, muitos tivessem respondido que desconheciam por completo o escritor, "enquanto outros identificavam o nome, mas não a sua obra nem a sua passagem por Paris".

         Abaixo do recorte de jornal, Montezuma acrescentou que, se Eça vivo fosse — "o que só se configura na imaginação do impossível —, diria que o português continua doente do francesismo". Disse mais: "Aqueles laboriosos portugueses, sem tempo para se cultivarem e que de cá saíram aos empurrões da Senhora Educação, tão classista, radiantes estão por Eça — isso o que conta, afinal — estar implantado na Avenida Charles De Gaulle (um militar cuja esposa o comandava!), entre dois arcos, o Triunfal do Arco do Triunfo e o de La Défense".

         Segundo Montezuma, Eça viveu na França, mas sempre evitou o francesismo. "Lá no fundo, Eça viveu em Paris, mas não viveu Paris. Esteve em Paris, o que é algo diferente", observou, acrescentando que, na capital francesa, o escritor não fez amizades com vultos literários, exceção feita a uma visita a Emile Zola (1840-1902), "por mero companheirismo naturalista". Segundo Montezuma, Eça sempre viveu recolhido, a escrever, a escrever, a escrever... e para a família. "Os outros, mais próximos, nem sabiam que era um escritor! Era tão só um vulgaríssimo cônsul e sob esta capa o desdém inteligente, aproveitando sem dobrar o espinhaço".

                                               III

         Para o articulista, Eça não foi para Paris por Paris ser Paris e movido pelo tal francesismo — ou seja, a atração que a capital do mundo à época exercia sobre todos os provincianos —, mas entendia que assim poderia servir melhor Portugal, não no âmbito de sua função como cônsul (uma espécie de notário no exterior), mas porque pretendia colocar em prática a ideia de publicar a Revista de Portugal. Para provar o que dizia, Montezuma exumou cartas de Eça, inéditas até terem sido publicadas na revista Ocidente, que foram dirigidas ao seu amigo Joaquim Pedro Oliveira Martins (1845-1894), historiador e cientista social.

         Na primeira delas, escrita em Londres, a 15/8/1888, Eça lembra que, àquela época, certas condições de imprimerie só permitiam que a revista fosse impressa em Paris, o que significa que pensava que seria melhor que pudesse estar ali ao pé da impressora para acompanhar as provas gráficas. Com a revista, Eça pretendia mostrar que "Portugal não é tão estúpido como por aqui se pensa".

         Além disso, o escritor imaginava a revista como um órgão dos interesses de Portugal na Europa, "por que uma parte destinada a essa função seria em francês, e por um engenhoso sistema, a Revista penetraria em todas as chancelarias da Europa e nos gabinetes de todos os homens importantes desde Bismarck até ao Papa". Para Eça, mesmo que a revista viesse a ser impressa em Portugal, "une grande partie de sa cuisine devrait être faite à Paris". De fato, a revista sairia algum tempo depois pela Livaria Chardron, do Porto, àquele tempo já vendida por seu fundador Ernesto Chardron para a firma Lugan & Genelioux Editores.

         Como Oliveira Martins a essa época já havia sido eleito deputado por Viana do Castelo e transitava bem no poder — tanto que, em 1892, seria convidado a ocupar a pasta da Fazenda —, Eça rogava os préstimos do amigo para trabalhar nos bastidores a sua candidatura a cônsul em Paris, pois soubera à boca pequena que o então cônsul, o visconde de Faria, pensava na possibilidade de deixar o posto. Como se pode concluir, Oliveira Martins deve ter trabalhado bem politicamente e de maneira muito ágil porque, a 18 de novembro de 1888, Eça já lhe escrevia de Paris.  E a Revista de Portugal haveria de circular de 1889 a 1892.

 

                                               IV

 

         Filho do filósofo e professor Joaquim de Carvalho (1892-1958), Montezuma nasceu na freguesia de Almedina, em Coimbra, em cuja Faculdade de Direito se licenciou. Logo após, mudou-se para Angola e Moçambique onde exerceu funções nos registros e na magistratura (Nova Lisboa, Inhambane e Lourenço Marques) até 6 de abril de 1976. Retornando a Portugal, exerceu a advocacia em Lisboa.

         De 1958 a 1965, financiado pelo município de Nova Lisboa, Angola, organizou e publicou os quatro tomos do Panorama das Literaturas das Américas, de 1900 à Actualidade. Também publicou Cervantes em Portugal, em parceria com D.José Toribio Medina (Lisboa: Assírio Bacelar, 2005). Nesses ensaios, publicados originalmente no Diário dos Açores, Montezuma demonstra, pela primeira vez, que Miguel de Cervantes (1547-1616) morou por largo período em Portugal, tendo vivido com uma portuguesa, de quem teve uma filha.

         Sor Juana Inés de la Cruz e o Padre António Vieira — ou a disputa sobre as finezas de Jesus Cristo (Lisboa: Assírio Bacelar/Vega, 1998) é outra obra de muito destaque em que Montezuma ousou contestar o que o poeta mexicano Octavio Paz (1914-1998), Prêmio Nobel de 1990,  escreveu em Sóror Juana Inés de la Cruz o Las Trampas de la Fe (Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1982), publicado no Brasil como As armadilhas da fé, em (excelente) tradução de Wladir Dupont (São Paulo: Siciliano, 1998). É de notar que Paz, a exemplo de Jorge Luís Borges (1899-1986) e Gabriel García Márquez (1928), foi amigo epistolográfico de Montezuma. Ao lado de Borges, aliás, Montezuma andou pelo interior de São Paulo, passando alguns dias na estância balneária de Águas de Lindóia.

         Em 2005, saiu o livro A Jeito de Homenagem a Eugénio de Andrade (Porto: Fólio Edições/O Primeiro de Janeiro) com observações de mais de 300 escritores de 20 diferentes países a respeito de um poema de Eugénio de Andrade (1923-2005) reunidas por Joaquim de Montezuma de Carvalho e publicadas no suplemento Das Artes das Letras do jornal O Primeiro de Janeiro, do Porto, de 2002 a 2004.

 

 

 

 

 

 

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A Razão por que Eça foi para Paris (Colagem), de Joaquim de Montezuma de Carvalho. Póvoa de Varzim: separata do Boletim Cultural Póvoa de Varzim, vol. 42, 2008, p. 347-357.

 

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junho, 2009