Deve ser irresistível, para biógrafos, dispor de uma personalidade como a de Marcel Proust para cavar, aprofundar e revolver. Nos últimos anos, algumas biografias novas saíram. Tive acesso a duas, suponho que as mais notadas em livrarias — A pomba apunhalada, de Pietro Citati (Companhia das Letras), e Marcel Proust, de Edmund White (Objetiva). A mais falada e respeitada parece ser, até hoje, a do inglês George Painter, mas não me impressionou muito. Achei o livro de Citati, menos biografia que ensaio biográfico, superior. Proust falou tão bem e tão fundo de si que nenhum biógrafo pode ser mais interessante que ele mesmo, fazendo ficção de lastro autobiográfico, o foi. Só mesmo com uma arte literária aproximada à ficção pode-se fazer justiça a ele. Proust pede, exige leituras mais artísticas que documentais. O filão editorial das biografias pode até se voltar para ele, explorando uma vida afinal de contas bastante singular e com boa dose de sensacionalismo em torno de suas preferências sexuais, hábitos, manias e reclusões, mas nada pode substituir, de fato, o efeito de ler a sua ficção, em geral evitada pelo público preguiçoso que se formou hoje em dia, até mesmo entre gente mais estudiosa, que prefere reduções e cacos de tudo pela Internet. Cacos não dão uma idéia precisa do que Proust escreve de jeito nenhum. Em busca do tempo perdido pede leituras e releituras constantes ao longo de uma vida — pelo prazer que dá, e ninguém precisa ser scholar para admirar o que Marcel escreve.

Em todo caso, o livro de Edmund White, modesto, pode ser interessante. White procura ser bastante honesto, principalmente se detendo sobre a homossexualidade do escritor. O tópico é controvertido e ele o enfrenta com dignidade, parecendo mais ou menos incumbido — e aí é engraçado — da missão de "esclarecer" o "caso Proust" para a cultura gay norte-americana. Ao perceber essa intenção "militante", o leitor poderá talvez reagir com um justo sarcasmo.

O autor está à vontade no campo da biografia de escritores homossexuais: já escreveu uma de Jean Genet e, nesse Marcel Proust, lembra que Genet teria se inspirado em À sombra das raparigas em flor para escrever Nossa Senhora das Flores. O "santo" de Sartre encontrara o volume de Em busca... negligenciado por outros prisioneiros, num dia de leitura na cadeia. Entretanto, no abismo social e mesmo estético que certamente há entre esses dois, Edmund White não se detém. Teria que explicar mais coisas. Supor que a predileção sexual aproxima e cimenta mundos sociais e culturais irreconciliáveis é uma das ingenuidades favoritas da militância. Nada é universal, na questão da sexualidade — pelo contrário, tudo é bastante cultural, fortemente determinado por fatores individuais e condicionado também à questão das classes e famílias espirituais.

 

 

Sem apologias

 

Se Proust fosse dado a militâncias e a apologias de guetos sexuais, Em busca do tempo perdido não seria o livro universal que é. Pouco importa que a figura que inspirou a namorada do narrador, Albertine, tenha sido Alfred Agostinelli, chofer do escritor. Para a arte literária, o que conta é talento e abrangência humana. A vida pessoal do autor é apenas matéria-prima indiferente a ser trabalhada por um talento maior ou menor.

A estratégia de Proust para falar de seu amor por Agostinelli — transformá-lo na atrevida e furtivamente libertina Albertine, que o narrador conhece em meio a outras garotas "ousadas" (a descrição parece se aplicar melhor a um bando de garotos mal-comportados) no balneário de Balbec — é investigada por White. Proust a teria tornado uma moça pouco convencional, com tendências lésbicas, para — sempre segundo White — poder projetar no personagem os ciúmes que sentia de seu amado chofer.

Faz sentido, mas pode não ser isso. Um escritor de talento pode fazer uso deste de maneiras bem menos automáticas. Na posição ontológica de que desfruta, um criador é uma alma que se difunde sobre sua criação, dotando-a desta e daquela sexualidade com maior ou menor sucesso. A alma "turva" de algum michê homossexual de rua pode muito bem estar disponível para a compreensão de um escritor convictamente heterossexual de talento, que pode incorporá-la, digamos. Um homossexual igualmente convicto pode entender perfeitamente — e transpor — o que sente um homem apaixonado por uma mulher bela e arredia. Para criadores verdadeiros, a fronteira sexual é nada. A questão só é relevante nas searas do fuxico.

Proust parecia muitíssimo mais interessado era na ambigüidade generalizada de seus personagens — como se o tempo todo nada pudesse ficar definido e decidido a respeito de ninguém, e isto não apenas no tocante a preferências sexuais, mas em questões de classe, gostos artísticos e mundanos, psicologia, política, guerra e tudo de que seu grande romance se ocupa. Era como se, por fidelidade a uma visão muito porosa, múltipla, atordoante, fragmentária, do mundo, ele incluísse a homossexualidade entre as surpresas que nos podem vir da revelação das fundas e imprevistas camadas que cada personagem carregaria em si.

Aliás, por vezes ele exagera nisso, e torna essa uma das poucas fraquezas de seu livro admirável — é pouco convincente a facilidade com que personagens até uma boa altura mundanos heterossexuais fanáticos por mulheres revelam-se interessados em rapazes, de programa ou outros — aí incluindo o aristocrático e complicado Saint-Loup.

Mas, num gênio tão vasto, perdoa-se esse lado de querer puxar mais adeptos para os lados do seu desejo proscrito, onde devia sentir-se, naturalmente, pouco à vontade. Até porque, ao abordar a psicologia do amor — nele incluído o amor do barão de Charlus pelo mau-caráter Morel — ninguém acertou tanto quanto ele. Para ele, essencialmente, amor é malogro, um investimento cego num ideal a que o inspirador deste nunca corresponde. A maldição do amor sem reciprocidade atravessa todos os sete volumes de Em busca... É preciso muita coragem intelectual para conviver com a lucidez proustiana — ele acha que o amor é como doença, como febre estritamente subjetiva, sem poder de contagiar o objeto de desejo ou adoração. Se mergulharem devidamente em Proust, os gays militantes podem sair desapontados.

 

 

A disputa pelo gênio

 

É notório que, no desejo de defender a sensibilidade gay, em geral o estudioso homossexual de autores notoriamente "comprometidos" força para que se encontre, por todos os lados, provas da premissa com que, digamos, foi a campo. É a razão daquela visão tatibitati do mundo em que praticamente não há lugar para o gosto heterossexual  nos homens — ou se é gay ou se é enrustido. Funciona como se qualquer negação de um pendor gay por parte de uma figura masculina, por lógica perversa, abrigasse o seu contrário. Não ocorre ao estudioso que o erro pode estar nele, que pode estar tomado por sua predileção de tal modo que não seja mais capaz de enxergar nada um pouco menos fácil no perímetro de sua "perspicácia" obsessiva, redundante.

Proust, que conseguia pairar muito acima dessas vulgaridades, por seu talento, observa que a amizade masculina, quando desprovida de interesses "turvos", quando existe, é das coisas mais altruístas, belas e misteriosas desse mundo. Naturalmente, ela existe — se toda amizade estivesse a priori contaminada pelo desejo erótico, de uma espécie socialmente reconhecida ou amaldiçoada, se tudo se reduzisse à libido, a alma humana seria, inevitavelmente, uma paisagem de uma pobreza desoladora demais.

White não vai muito para os lados do escritor, porque lhe interessa mais o enigma do homem. Detém-se nos namoros que ele teve. Com o músico Reynaldo Hahn, com Jacques Bizet, com Antoine Bibesco, com Lucien Daudet, com Bertrand de Fenelon, com Agostinelli, com um garçom do Ritz e finalmente com um sueco que descreve meio como um protótipo de "garanhão" escandinavo.

Observação digna de nota de White é esta: à medida que Proust vai trocando seus namorados artistas por homens mais comuns, trabalhadores e heterossexuais, o sofrimento aumenta. Como muitos homossexuais, Proust quer arrebatar o difícil — melhor, impossível — amor dos "homens de verdade". É uma obsessão que o deixa infeliz e ávido de afetividades que só podem ser compradas na moeda da má-fé. A razão de sua firme crença na não-reciprocidade em casos de amor pode estar aí. Há um desejo homossexual generalizado pelo macho não-entendido, mas a ironia é que "um homem de verdade é aquele que ama mulheres de verdade", como suspira o lírico Molina de Manuel Puig em O beijo da mulher-aranha. Proust dramatiza essa rejeição e, por seu talento, consegue universalizá-la. É perito em detectar as precariedades de todo sonho romântico.

Entretanto, é relevante assinalar que Edmund Wilson, em O castelo de Axel, tem uma opinião menos ortodoxa sobre a sua sexualidade. Wilson achava que o escritor era menos um homossexual convicto que um heterossexual ressentido e destaca a beleza, a arte, a precisão com que descreve as mulheres enquanto, ao pintar personagens homossexuais masculinos, revela vícios, defeitos morais e apetites sórdidos que os tornam grotescos. Pode-se alegar que aí Wilson estaria "puxando" o escritor para seu lado, querendo que fosse heterossexual. Mas, sua opinião ao menos faz pensar com uma dose menor de acomodação intelectual.

O amor de Swann por Odette é o exemplo mais clássico, na hipótese de um Proust heterossexual. White vem e diz que é o amor de Proust por Reynaldo Hahn, na realidade. Mas, pouco importa. A análise das inúmeras contradições desse caso entre o mundano fino e a "cocotte" vulgar, em dissecações para lá de minuciosas, tornou-se uma das mais famosas pinturas da dor de um caso heterossexual cheio de paranóia e ciúme. Proust transcendia o mundo gay e era capaz de escrever sobre sentimentos heterossexuais como poucos heterossexuais conseguiram. Talento literário é isso.

Um monumento como Em busca do tempo perdido, hoje em domínio público, tinha que ser absorvido pelos muitos usos que a indústria cultural procura fazer daquilo que é universalmente admirado: há um livro inglês usando as idéias de Proust numa espécie de manual de auto-ajuda, e o Em busca... também foi transformado em história em quadrinhos, numa "facilitação" que arrancou protestos dos puristas.

Estúpido brigar com coisas assim num mundo onde tudo se vende. É inevitável esse uso, e tão inevitável quanto haver milhares de Edmund Whites querendo que o escritor se ajuste a um figurino sexual, porque é muito honroso para a comunidade gay ter um artista dessa estatura entre os que podem ser citados como exemplos do "martírio da sensibilidade alternativa" ou coisa do gênero.

Proust é um senhor alimento para a inteligência e a sensibilidade para todo mundo, mais que um manancial de fofocas para "Juquinhas" invertidos. O maior dos alimentos, de fato. Ao lê-lo e entendê-lo, sentimo-nos mais inteligentes, mais vivos. Talvez nunca vá servir de exemplo moral para nada — porque gênios artísticos, com suas vidas particularmente problemáticas, estão muito acima dessa obsessão mesquinha e sectária por modelos, por esquemas "politicamente corretos", pertençam estes a códigos oficiais ou marginais.

Por que erguê-lo como santo ou vilão desta ou daquela preferência sexual? Era um homem desconcertante, pela honestidade minuciosa e implacável com que via os amigos, a sociedade, o mundo, mas também a si mesmo — nunca se excluiu, como objeto, de seu vertiginoso talento para tudo desmistificar. Teve uma vida atormentada e contraditória como poucas. Só conta para o admirador, no entanto, o fato inegável de que soube transfigurá-la em beleza. É o maior — na verdade, o único — exemplo que se deve dar, como escritor.

 

 

 

junho, 2009