balzac, por rodin
 
 
 
 
 

 

Como leitor passional e assistemático que sou, nunca me preocupei em ler Balzac direito. Confesso que dele só li — e com muito prazer — o romance Eugenia Grandet, que me impressionou bastante. Tentei ler a decantada obra-prima Ilusões perdidas e não fui muito longe. Talvez não fosse o momento certo. Pois os grandes livros estão sujeitos às flutuações de nosso desejo, naturalmente, e às vezes, aleatoriamente, abrimos o volume de um autor com quem não tínhamos vontade nenhuma de entrar em contato e nos deparamos com alguém que nos cativa e de quem leremos depois mais livros. Por outro lado, livros recomendados, clássicos que são citados por ótimas razões aqui e ali, podem não nos ter atraído simplesmente. Pode-se não gostar de um clássico como Dom Quixote e a extensão de Em busca do tempo perdido dá urticária e sono em muita gente que, em outros aspectos, é bastante refinada e até se deleita com coisas bastante complexas. Não gostar do Ulisses, de Joyce, por exemplo, me parece perfeitamente compreensível. Se um livro não nos dá prazer, não importa a fama que tenha e o quanto possa ficar bem citá-lo, tê-lo na estante, exibi-lo — uma leitura que não nos emociona não nos fecunda. É preciso ter a coragem da emoção que se tem, do gosto que se adquire — e coragem de assumir as aversões que são decorrentes deste gosto, não importa quais.

Na febre de biografias do mercado editorial, com a enxurrada de títulos, de livrões e livrecos sobre vidas que muitas vezes só têm de impressionante a publicidade feita em torno delas, topei com uma de Balzac. Olhando para a capa desse livro da Cia. das Letras lembrei-me da nobreza de caráter realmente ímpar de Eugenia Grandet e da dívida que contraíra com o inacabado Ilusões perdidas. E senti que sempre tinha querido saber mais da vida de Balzac.

O livro de Graham Robb — Balzac, uma biografia — não me decepcionou. A prosa tem um encanto sutil, indireto, da de alguns biógrafos ingleses que, quando vão nos contar a vida de alguém, especialmente de alguém que já atingiu altitudes de lenda, adotam um tom de despretensão que é fundamental para conquistar nossa adesão, além de uma incredulidade divertida, irreverente, que nos coloca toda a humanidade contraditória da figura bem ali, na nossa frente.

No caso da vida de Balzac, esse tom de incredulidade e humor é indispensável, já que não parece ter havido escritor com uma vida mais complicada, farsesca, rocambolesca, contraditória e mesmo absurda. Qualquer episódio de sua vida parece capaz de comportar mais de três ou quatro versões igualmente convincentes e Robb deve ter movido uma considerável quantidade de papelada para pesquisar o fio da verdade e montar o seu Balzac. Confessa que sua obra, claro, é uma das possíveis leituras da vida do escritor. A confusão biográfica de Balzac é atordoante.

O homem que já foi considerado o escritor mais fértil da história da Literatura era fértil em contradições: amado por Marx por ter sido, segundo este, o primeiro grande escritor a desmontar por descrições o mecanismo perverso da acumulação do capital, era também monarquista e não parecia nutrir simpatia pelas chamadas "classes populares". Seu negócio era mesmo a aristocracia, na qual era capaz de enxergar todas as qualidades, num deslumbramento de homem de talento, mas sem título, plebeu, uma espécie peculiar de pária numa sociedade esnobe. Robb investiga também um lado menos falado de Balzac — a homossexualidade — trazendo alguns dados surpreendentes. Caso complexo, o do escritor, considerado geralmente um grande sedutor de mulheres. Seria, segundo Robb, um bom exemplo de natureza bissexual ou daquela "perversidade polimorfa" de que fala Freud e a Psicanálise popularizou com seu vocabulário reducionista. O homem que exaltava o casamento, não sem ironizar a vida conjugal, passou a vida solteiro, só se casando com uma idolatrada Eveline no fim dela. Capaz de entender muito bem os mecanismos da usura e da avareza, passou a vida mergulhado em dívidas e só seus esquemas de fuga aos seus credores que não lhe saíam dos calcanhares teriam dado outros tantos romances. Elaborava sem cessar romances que acabavam por ironia, sendo premonitórios em relações às suas tragédias sociais e decepções amorosas. Tinha uma força de vontade fantástica, de que se orgulhava, mas este mesmo voluntarismo admirável era o responsável por ele se enredar numa multiplicidade de empreendimentos que o arrasavam. Seria um louco completo — e durante algum tempo, seguindo uma convenção do Romantismo, cultivou mesmo a imagem de louco — se não fosse dotado da capacidade única de colocar todas as suas projeções e mitomanias no papel. Balzac é bem o caso da escritura que tomou conta da vida de seu escritor, de criatividade desenfreada e até mesmo em descompasso com as convicções que afirmava ter. Uma contradição exuberante atrás da outra.

Há algo de muito contemporâneo em Balzac, a gente o sente muito perto da fragmentação, da dissociação, dos exageros a que nos acostumamos ao saber da vida de escritores deste século. Foi, segundo Walter Benjamin, "o primeiro herói da vida moderna". Assediado pela multiplicidade de eus, pela fragmentação, pelas doses de misticismo amalucado e de ceticismo vitalista que muito depois de sua época se tornariam tão freqüentes, Balzac é um enigma colorido e múltiplo merecedor de uma grande biografia, realmente. Robb não chegou a escrever um livro indispensável, mas, quem lê-lo sem saber muita coisa sobre Balzac, como eu, não ficará nada insatisfeito.

 

 

 

 

dezembro, 2009