A
todo escritor incomoda quando tem necessidade de escrever e nenhum
assunto vem à cabeça. Vai à janela em busca de algo que o inspire. A
paisagem o deixa ainda mais prostrado. A mesma paisagem, dez dias atrás,
inspiraria no mínimo um poema arrebatador. Mas agora se parece com um
vasto Afeganistão. E, pior, com um Afeganistão sem tiros. Antes fosse um
Afeganistão repleto de aviões de caça, tiros e violência, feito o
original. Poderia ser perigoso, porém decerto despertaria um tema. O
vento afasta a cortina do apartamento da frente. Surge a vizinha, mais
despida do que nunca. No entanto, para ele, naquela conjuntura, trata-se
apenas de um zouto tamanhão. Um sabiá passa cantando. Nunca um pássaro
lhe soou tão desafinado. Se fosse agora um João Gilberto em crise de
inspiração, certamente o abateria a pedradas, com o argumento de que
desafinação de sabiá não vale.
O
escritor sem assunto, ou sem capacidade momentânea para sacar o assunto
que se lhe apresenta, é um protótipo de homem em estado terminal. E,
agonizante, apela para o uísque. A bebida vale por uma transfusão de
sangue. Concentra-se esperançoso, enquanto penetra
pelas veias a pretensa inspiração on the rocks. Horas mais tarde, já
completamente de porre, senta-se resoluto ao computador. Logo surge um
tema e brota-lhe um texto que aparenta ser digno de um Machado de Assis.
Na ressaca do dia seguinte, no entanto, antes que alguém ponha os olhos
naquilo, sai apagando tudo apressadamente. E torna-se ainda mais
desesperado.
Na
época em que estava escrevendo O Outro Lado do Mundo, tive uma
crise dessas. Tinha escrito 170 páginas e ainda não conseguia fechar o
epílogo. Depois de muito tentar, digitando e deletando com a mesma
sofreguidão, resolvi dormir e esperar que um passarinho, naturalmente
mais afinado do que o sabiá do suposto João Gilberto, viesse me cantar,
em sonhos, alguma ajuda. Em lugar do roteiro que desejava, porém,
acordei com uma canção na cabeça. Pior que era bonita e tive de me
dedicar a ela, atrasando ainda mais o livro.
Não
raro, sonho compondo e
acordo feito canário, trinando uma melodia. A maioria não é grande
coisa. Faria bem melhor acordado. Algumas, porém, surpreendem. Numa
excursão em Goiás,
amanheci com um tema intrigante grudado na memória. Sonhei que me apresentava num
palco e observava atentamente minhas mãos desenhando no violão uma
harmonia que não havia experimentado antes. A melodia, também inédita,
doce e forte, arrebentava nos falantes. Estranhamente, chegava com
fragmentos de letra, coisa rara de acontecer em meus sonhos: "Dona...".
Daí seguiam-se compassos de puro solo instrumental. Inesperadamente a
letra reaparecia: "Tã, tã, tã, batem na porta, não precisa ver quem
é...". Sucediam-se mais
alguns compassos interpretados unicamente por instrumentos, para, mais
uma vez, ressurgir as palavras. "Entre a cobra e o passarinho, entre a
pomba e o gavião...".
Ao
acordar, trauteava a melodia completa. Escrevi o poema fracionado numa
folha de papel. Tornou-se evidente que se tratava de um quebra-cabeça. E
que bastava montá-lo. O parceiro, Sá, dormia num quarto sobre o meu.
Nervoso, com medo de esquecer algum trecho, queria que viesse
urgentemente me ajudar. Chamei-o ao telefone. Ocupado. Tentei de novo.
Quinze minutos se passaram e o telefone não desocupava. Empunhei então
um rodo que tinha visto no banheiro e comecei a bater no teto com a
ponta do cabo. Dois quilos de caliça e pó de tinta depois, o parceiro
apontou à porta, esbaforido, e encontrou um teto parcialmente
despedaçado. Recusando-me a perder tempo para explicar o ocorrido,
apresentei-lhe a composição inacabada, que o surpreendeu da mesma forma
que havia me impressionado. Depois da surpresa, pusemo-nos a trabalhar
e, finalmente, desembaralhamos o jogo que terminou resultando numa
canção de sucesso, num monte de emoções na vida e em assunto bastante
para batucar no computador esta crônica de falta do que falar. Tudo isso
sem que tenha sido necessário confundir a vizinha da frente, que é uma
tremenda gata, com algum bigodudo zouto tamanhão. Já posso dormir em
paz.