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Há lugares onde o espírito morre

a fim de que nasça uma verdade que é a sua própria negação

(Albert Camus)

 

 

Eu esteve a pensar em vidas difíceis. São quase todas... Instaurou-se este pensamento a partir de Madalena — a bíblica rameira e rememorada por "Manuelito" Eduardo Campos na protagonista arrependida da peça "O Morro do Ouro". Daí para o desvario prodigioso da memória foi um estardalhaço.

 

Naquele dia, Eu, dezessete anos, pré-vestibulando aterrorizado na Capital, viajaria num TL vermelho com amigos rumo a Limoeiro do Norte. Saindo do Colégio Cearense, noite acesa de uma sexta-feira, vinte e duas horas, o encontro seria na praça Coração de Jesus. A partir dali, toda uma via sacra a descambar em um epílogo profano. Ajuste de bagagens e a assertiva de um: — Vamos jantar, pessoal uma cervejinha, e agente vai embora!...

 

A primeira parada: "Ladeira". Aquele velho restaurante fora ponto certo no caminho da lembrança de insensatas tardes no "Saint-Tropez", em plena Leste-Oeste de tantos descaminhos em fins de semana posteriores... Pois bem, desde o "Ladeira", adiante, o mundo tornou-se caldo de anseios e descobertas.

 

Segunda parada... Eu nunca poderia imaginar que nos altos da Mesbla, pela rua General Sampaio, ao lado do Theatro José de Alencar, aqueles seios apertados por faixas douradas, o cigarro em piteira, invadiriam o olhar do garoto espantado. Já se mantinha forçadamente esquecida visão semelhante de Eu, proibida, de dois anos antes, em que se viu na "Boite Iracema", na Carnaubinha, lupanar limoeirense pleno de mistérios ao jovem que apenas solicitara uma carona no Jeep de Totonho até o Arraial, para assistir São Raimundo x Palmeiras... Aquelas eram gorduchas, indiferentes, amedrontadoras... Diferentes das "francesinhas" da Mesbla, empoadas de fantasia.

 

Naquela noite, os gestos ansiavam por caminhos tortos. Pois dali as próximas estações foram por portas travessas... Bares escuros, inferninhos, mulheres atrevidas, sete vidas...

 

Anos depois, Eu recordaria de sua ingenuidade diante do espelho gigante da rua Senador Alencar. O "Senadorzão" era palco solene depois do expediente bancário. Uma caderneta com o emblema do Botafogo se tornava rubra entre anotações. Outras visões também surgiram, quando, por outras vias, Eu acendera a curiosidade nos velhos edifícios da avenida Alberto Nepomuceno, sob o "Tatazão". Ali, a cerveja fria era cúmplice ante os cubículos de meia parede, onde falsos amores se consumiam entre gemidos.

 

Na rua do Trilho de Ferro, Adolfo Caminha deu espaço a seu romance A Normalista, e por lá, no que hoje se denomina avenida Tristão Gonçalves, havia também um palco para uma irônica fantasia de "strippers". E, ainda, sobre as areias da Praia do Futuro, um circo  montado recebia aplausos de uma geração que se estasiava pela suposta atitude artística de transformistas, a entoarem "We are the champions", do Queen.

 

Fortaleza era mais autêntica e as recomendações do enfermeiro da rua Castro e Silva pareciam ingênuas diante do falso progresso que sacudiria o futuro. Hoje, o que essas menininhas eurodoleiras têm a ver com as garotas Coca-Cola de antanho do estranhamente renascido Estoril — fênix depenada da Iracema prostituída?

 

Aqui, ali, alhures... Em remotas eras, hoje, sempre, a lição do mundo se converte em delírios de Sade, em perversões de Henry Miller e Anaïs Nin, em sínteses eróticas de José Alcides Pinto. Calígulas e Messalinas reproduzem-se em progressão geométrica. O que Eu entende dessa vida? Importa para ele existir, mesmo seja a existência tão dolorosa de vez em quando... Melhor jogar a primeira pétala, não a pedra, como já disse Odilon Camargo...

 

O estatuto da cortesia deixou de ser o espetáculo em segredo da raça, conforme perversamente contara um Silvino em páginas antológicas de "Um jornal sem regras", pespontadas por Fd’I, Falcão, Tarcísio Matos e tais... Tudo se manifesta de forma tão absurdamente livre, que a libido e o desejo se transtornam em meros jogos de automática afirmação. O pecado, ah! o pecado!, é apenas uma idiossincrasia na parede da memória. E não dói mais, como seria a dor uma dádiva da vida e da generosa fruição da existência.

 

É certo: não sei mais daqueles amigos de viagem, mas os olhares perdidos de Margots, Bristaldas e Perpétuas soluçam na memória. Nomes nunca sabidos ponderam estigmas ante tanta permissividade dos dias de agora. Eu questiona seus pensamentos. Talvez esteja começando a sair da zona tórrida da devassidão. Talvez esteja diante de falsas verdades. Ou, mesmo, desistindo da realidade, falseada com verdade. Eu talvez pense apenas em vidas difíceis, imaginando que o perigo maior seja desconhecer que viver é só uma solução.

 

 

 

junho, 2009