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     O termo filme noir designa um tipo de cinema industrial produzido em Hollywood, basicamente nas décadas de 40 e 50, mas com reflexos e influências sentidos até os dias de hoje, e que não constituiu verdadeiramente uma escola, ou um movimento cinematográfico excludente de outro no mesmo tempo e espaço (como, por exemplo, o neo-realismo italiano, ou a nouvelle vague francesa), não se tratando, também, de produção identificada com certos diretores, criadores de uma nova estética cinematográfica, o que poderia lhe conferir um tratamento de filme de uma linha autoral diferenciada.

         Há controvérsias, efetivamente, se o filme noir seria um movimento, ciclo, gênero, inflexão ou tendência de cinema. Ou nada disso. Mesmo sobre o seu período de vigência, a crítica não é unânime, havendo quem o identifique exclusivamente com a década de 40, outros dos 40 aos 60, e alguns que classifiquem determinados filmes produzidos nas décadas seguintes como legítimos noirs1.

A. C. Gomes de Mattos, após fazer uma detalhada análise de dezenas de obras (livros, artigos, teses) publicadas sobre o tema (e ver todos os filmes noirs puros), não se furta a dar a sua própria opinião, recusando-se a aprisionar o filme noir em quaisquer desses conceitos normalmente utilizados pela crítica, e negando possa ser o noir movimento, ciclo, gênero, ou ainda, ser reduzido a algo como apenas um estilo, tom e atmosfera, ou tipo de estrutura narrativa2.

         Contesta, também, a afirmativa de R. Barton Palmer, de que o filme noir seria um "fenômeno transgenérico" e não endossa a conclusão de Elizabeth Cowie, em artigo inserido na coletânea Shades of Noir (Film Noir and Women): "uma certa inflexão ou tendência que nasce em certos gêneros, notavelmente no filme de gângster, no thriller criminal e no filme de detetive".

         Para o referido autor, considerá-lo apenas um fenômeno transgenérico, inflexão ou tendência, é correr o risco de descaracterizar o filme noir: "não existiria propriamente um tipo de filme distinto dos demais, mas somente, para usarmos a frase pitoresca de Jeanine Basinger (American Cinema — One hundred Years of Filmmaking/1994), 'uma espécie de virus que ataca um gênero saudável e faz ele ficar doente'".

         É interessante essa última imagem, relacionando o filme noir com vírus e doença. A doença que se percebe no filme noir "puro" não é a do corpo físico (apesar do ambiente de degradação onde chafurdam vilões e mocinhos), mas da alma, com um clima de pessimismo subjacente, em que as neuroses, paranóias e loucura permeiam as ações dos personagens, e onde não existe espaço para o Herói tradicional. Vítimas e assassinos, investigadores e mulheres (fatais ou domésticas), todos são, de alguma forma, culpados de alguma coisa, e, de alguma forma, todos sairão perdendo, ao final. Isso constitui uma contradição insolúvel dentro da cultura e sociedade americanas, sempre férteis na criação e divulgação de símbolos e signos vencedores, que estão na origem da construção do país.

         Não havendo, portanto, consenso dos estudiosos, a respeito da classificação ou categorização do filme noir, transcrevo a opinião abalizada de A. C. Gomes de Mattos, que faz uma espécie de síntese das definições da crítica americana:

 

"Achamos que o filme noir é um desvio ou evolução dentro do vasto campo do gênero drama criminal, que teve o seu apogeu durante os anos 40 até meados dos anos 50 e foi uma resposta às condições sociais, históricas e culturais reinantes na América durante a Segunda Guerra Mundial e no imediato pós-guerra.

         Nele se combinariam, basicamente, as formas da ficção criminal americana produzida por escritores como Dashiell Hammett, Raymond Chandler, James M. Cain, Cornell Woolrich e seus descendentes ou semelhantes literários, com um estilo visual inspirado nos filmes expressionistas alemães dos anos 20.

         Este seria o que chamamos de filme noir puro, que se distingue dos filmes noirs impuros, isto é, aqueles nos quais vislumbramos apenas alguns elementos noirs temáticos ou visuais, o tal vírus de Jeanine, que pode 'enegrecer' quaisquer variantes do drama criminal ou filmes de outros gêneros (western, histórico, aventura, fantástico, etc.), como veremos adiante3".

 

Por outro lado, unânime (ou quase), é a aceitação dos críticos de que o filme noir é uma invenção da década de 40, não se fazendo referência a qualquer produção que se enquadre nesse estilo na década de 304.

Sobre a origem do termo, entretanto, não há controvérsia: trata-se uma expressão inventada pela crítica francesa no período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial, para "designar um grupo de filmes criminais americanos, produzidos a partir dos anos 40, com certas particularidades temáticas e visuais que os distinguiam daqueles feitos antes da guerra5 ".

         A palavra noir foi inspirada na Série Noire, da Editora Gallimard, criada em 1945. Eram romances policiais, publicados na famosa coleção de capa preta (daí o nome), geralmente tradução francesa de histórias de escritores anglo-saxões: Dashiell Hammett, Raymond Chandler, James M. Cain, Cornel Woolrich e outros.

         Interessante notar que a descoberta pela crítica dessa vertente noir do cinema criminal de Hollywood decorreu, senão de um acaso, certamente de uma circunstância histórica que tem uma ligação apenas indireta com tais filmes: a Segunda Guerra Mundial e a ocupação da França pelos nazistas.

         Conforme se falará mais à frente, os primeiros filmes noirs foram produzidos a partir de 1940, quando a Europa já estava em guerra, e, mesmo sabendo-se que os Estados Unidos somente viriam a entrar no conflito em 1941, com o episódio de Pearl Harbor, os críticos franceses perceberam que tais filmes já incorporavam a atmosfera pessimista que dominava o planeta, o que os permitiu facilmente distingui-los daqueles francamente otimistas do final da década de 30.

         O detalhe importante para tal descoberta é que, durante a ocupação nazista, os filmes americanos foram proibidos de serem exibidos na França. Daí decorreu o fato de que muitos filmes, normalmente considerados B da indústria de Hollywood, e que pouco interesse despertaram na crítica de seu próprio país, ao serem exibidos na França, permitiram, pela proximidade temporal de sua exibição, e pela quantidade, serem identificados por alguns críticos mais argutos como possuidores de um estilo diferenciado, que os colocava numa categoria à margem do filme policial comum6.

         Com a libertação, uma série de filmes do gênero drama criminal, produção acumulada nos estúdios de Hollywood nos últimos quatro anos, foram exibidos no mercado francês, num prazo de poucas semanas7.

         Tal fato permitiu que alguns críticos percebessem pontos de semelhança e identificação entre tais filmes, possibilitando a sua classificação numa categoria própria, até então não existente: o filme noir.

         Na sua obra várias vezes aqui citada, e que serviu de roteiro a este trabalho, A. C. Gomes de Mattos adverte que "nem Huston, nem Preminger, Dmytryk, Wilder ou Lang tinham consciência de que estavam fazendo filmes noirs".

         Esses diretores não se filiavam a uma corrente estética própria, e, como peças da engrenagem industrial de Hollywood, pulavam de um gênero cinematográfico para outro, do musical ao drama expressionista, do western à comédia, vinham de escolas e até de países diferentes, não faziam cinema com a pretensão de estarem criando uma escola do filme noir, mesmo porque este termo sequer havia sido inventado.

         A certidão de batismo da novel categoria fílmica está no artigo de Nino Frank "Un Nouveau Genre Policier: L'Aventure Criminelle", publicado na revista semanal Ecran Français8.

         Apenas um mês se passou e, em novembro de 1946, o crítico Jean-Pierre Chartier publicou, em La Revue du Cinéma, uma resenha em que o termo aparece no título: "Les Américains Aussi Font des Films 'Noir'", na qual, endossando as primeiras observações de Frank, descrevia alguns dos elementos básicos para o reconhecimento e individualização da categoria noir e as primeiras bases teóricas para a construção de uma crítica voltada para essa espécie de filme.

         Esse termo — noir — e o próprio conceito de filme noir, somente foram adotados pela crítica anglo-saxã mais de vinte anos depois, em 1968, por Charles Higham e Joel Greenberg, no capítulo Black Cinema, do livro Hollywood in the Forties9.

         Outro ponto que interessa no presente trabalho, é o estudo das FONTES do filme noir. Segundo os críticos, são duas: uma literária, outra cinematográfica.

         Quanto à fonte literária, o filme noir é descendente direto das histórias de detetive publicadas em revistas baratas, que começaram a ser publicadas nos Estados Unidos no fim do século 19 e alcançaram um enorme sucesso a partir de 1920. Eram chamadas de pulp magazines e levavam ao leitor popular uma gama variada de contos e novelas divididos em diversos gêneros, sendo os mais populares os western e as histórias de detetive.

         Na revista Black Mask consolidou-se a escola chamada hard-boiled de histórias de detetive, que correspondia ao roman noir dos franceses, e que acabou fornecendo a matéria, o clima, o ambiente e os personagens para os primeiros filmes noirs.

         As histórias tradicionais, principalmente na literatura inglesa, seguiam o modelo criado por Edgar Allan Poe em 1841, com Murders in the Rue Morgue, considerada a primeira história de detetives publicada. Os detetives mais famosos da literatura (Sherlock Holmes, Hercule Poirot etc) eram clones do personagem de Poe, C. Auguste Dupin, ao buscar solucionar todos os enigmas com fina dedução e lógica impecável. O ambiente em que atuavam esses super-investigadores, dotados de uma inteligência superior, era sempre sofisticado: castelos, salões luxuosos, bibliotecas, casas de campo ancestrais. E, o principal: agiam sempre com alegria no cumprimento do seu dever, num mundo de luz e certeza, em que o crime era apenas um detalhe incômodo para a sociedade, que sempre merecia um final feliz.

          Na década de 30, esse modelo foi revolucionado por uma grei de escritores, egressos da pulp fiction, que vieram fornecer a matéria prima literária base do filme noir, ou seja, a explicitação de um universo que hoje definimos como noir: se, de um lado, existe um mundo respeitável, de instituições sólidas, com uma máquina política, policial e judiciária que deve funcionar, de outro, os personagens têm apenas pálidas referências desse mundo distante, arrastando-se num submundo de vício e crime, numa selva em que todos são predadores uns dos outros, e na qual é proibido ter esperança.

         O primeiro desses escritores foi Dashiell Hammett, um ex-sargento do exército americano na linha de frente da Primeira Guerra, da qual trouxe como medalha uma doença pulmonar que nunca o deixou10, e ex-detetive da Agência Nacional Pinkerton. Hammett publicou seus primeiros contos na pulp magazine X-9, em 1923, e, em 1930, após os romances de 1929 Red Harvest e The Dain Curse, criou o seu personagem mais famoso, Sam Spade, com o romance hard-boiled O Falcão Maltês/The Maltese Falcon, o qual, ao ser levado à tela por John Huston (Relíquia Macabra/The Maltese Falcon, 1941), transformou-se num ícone do cinema noir, e talvez o seu filme mais famoso.

         Importantíssimo autor e roteirista do filme noir foi Raymond Chandler, também egresso da pulp fiction. Chandler, considerado o melhor escritor de histórias de detetives da literatura americana, ambientou suas histórias no Sul da Califórnia, e criou um novo herói do cinema noir, o detetive Philip Marlowe — um Sam Spade mais culto e sentimental — que aparece pela primeira vez em The Big Sleep, reaparecendo, depois, em Farewell my Lovely e The Lady in the Lake11.

         Outro grande escritor a inspirar o filme noir foi James M. Cain, com duas obras primas: Double Indemnity e The Postman Always Rings Twice. Cain chegou a ser classificado como um escritor tough guy — rótulo que abominava — pelo fato de sexo e violência aparecerem com destaque em seus livros.

         O último dos quatro grandes escritores que forneceram matéria prima para os melhores filmes noirs foi Cornell Woolrich, o mais prolífico de todos, também conhecido pelos pseudônimos de William Irish e George Hopley. Da obra de Woolrich resultaram inúmeros filmes, sendo dez deles considerados por A. C. Gomes de Mattos como noir puro, citados e analisados em seu livro.

         É importante lembrar, no entanto, que grande parte das obras literárias dos autores acima foram produzidas nas décadas de 20 e 30, e, levadas à tela nesse período, nenhuma delas resultou em filmes  noirs, e só foram filmadas à maneira noire durante a guerra, confirmando a tese de que o filme noir só passou a existir na década de 40. Como exemplo mais evidente, A. C. Gomes de Mattos, citando Carlos Clarens, em Shades of Noir, demonstra que "as primeiras versões dos romances de Dashiell Hammett, The Maltese Falcon e The Glass Key, intituladas aqui no Brasil O falcão maltês/1931 (Dir. Roy Del Ruth) e A chave de vidro/1933 (Dir. Frank Tuttle), não têm as mesmas qualidades definidoras das respectivas refilmagens, a de John Huston em 1941 (Relíquia macabra) e a de Stuart Heisler em 1942 (Capitulou sorrindo)12".

         Quanto à fonte cinematográfica mais importante do filme noir, sem dúvida foi o expressionismo alemão dos anos 20. Segundo o sempre citado A. C. Gomes de Mattos, "os vestígios do expressionismo nos filmes noirs aparecem não só nos personagens neuróticos e aflitos, no clima de penumbra e insânia, como também nas sequências de pesadelo, quando, por alguns instantes, o filme se torna abertamente objetivo, mostrando fragmentos do que se passa na mente desordenada do herói como, por exemplo, o delírio de Marlowe (Dick Powell), drogado à força em Até a vista querida".

         Como fontes cinematográficas secundárias, ou menos importantes, do filme noir, alguns autores apontam o filme de gângster, o realismo poético (grupo de filmes franceses realizados entre 1934 e 1938) e o neo-realismo italiano. Apesar de certas semelhanças no enredo e nos personagens entre as histórias de gângster e noir, a diferença fundamental é que nestes ninguém se redime vencendo no final, nem o herói, enquanto no filme de gângster o final corresponde sempre à nossa expectativa de limpeza: o gângster morre, a lei prevalece, faz-se justiça. Quanto ao neo-realismo italiano, a influência pode ter se limitado à questão da imagem — predomínio de tons cinza e granulados em cenários reais de ruas e ruínas —, não se aproximando sequer da importância do expressionismo alemão, fonte inspiradora principal dos primeiros realizadores noirs.

         Finalmente, é importante lembrar que, assim como o expressionismo alemão é fonte primeva do cinema noir, este também exerceu poderosa influência e se espraiou por uma gama enorme de filmes dos mais variados gêneros, nos quais podem ser encontrados isoladamente certos atributos temáticos dos verdadeiros filmes noirs. De acordo com A. C. Gomes de Mattos, "esta é a razão pela qual existem tantas listas de filmes noirs tão abrangentes — os críticos e historiadores não fazem distinção entre os filmes noirs puros e aqueles filmes que apenas contém elementos noirs13".

         E conclui aquele autor, tantas vezes citado neste modesto trabalho:

 

         "O verdadeiro filme noir, na nossa concepção, é, como já dissemos, somente aquele que conjuga as formas de ficção criminal americana, seja na modalidade proposta por Hammett e Chandler, seja na apresentada por Cain e Woolrich, com o estilo visual expressionista.

         Este às vezes pode não ser tão marcante, mas tem que haver, basicamente, o tom deprimente e pessimista, o clima de corrupção, morte, angústia, loucura, fatalismo etc., que já existiam naquela ficção.

         E é imprescindível que a ação transcorra predominantemente em um ambiente urbano americano dos anos 40 e 50, porque o filme noir está ligado a este período histórico, sendo condicionado pelas condições socioculturais então reinantes14".

 

 

Notas

 

 

março, 2009

 

 
 
 
 
Danilo Fernandes Rocha (Belo Horizonte/MG). Advogado, roteirista, cineasta e escritor. Autor de Mortemática (poesia, Editora Nativa, 2004) e Viagem ao Fundo do Poço (romance). Participou da antologia Novos contistas mineiros (Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1988). Um dos vencedores do concurso literário Estímulo às Artes — Auxílio Edição — Literatura 2005, promovido por Palácio das Artes/Suplemento Literário de Minas Gerais, com o livro de contos Mea Culpa (no prelo). Escreveu, sob encomenda, o roteiro para longa-metragem intitulado Lagartas também voam. Finalista do concurso de contos da revista Bravo (2007), com o conto "Portal da Percepção". Escreveu e dirigiu os curtas Sic transit gloria mundi e Em terra de cego.
 
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