I

 

Um coração aberto recebe igualmente amores e dores. Segura o coração frente ao corpo, entre as mãos, para sentir intensamente o que vem de fora, ele tentará escapar, pulsando na vibração de um tambor nervoso, ele tentará escapar, liquefazendo-se em sangue a escorrer entre os dedos, segure-o firme e feche os olhos para que não haja o risco das imagens transformarem-se em lógica, o cérebro numa câmara escura dorme.

 

 

 

II

 

O avesso é perto, alguns milímetros para o interno romper e o externo perfurar, alguns segundos para saber os dois lados de uma mesma coisa, por mais que o lado oculto tenha silenciado por muito tempo icebergs — são indiferentes para as aves, o céu é um segundo horizonte, um dia para o vento desviar a ave contra as rochas e a ave cair no mar (superficialmente vazio — profundamente misterioso) atravessando a cor primária.

 

 

 

III

 

A noite tem o cheiro dos excrementos do amor, lua cúmplice do sangue que ruidoso circula nas veias e que delas se esvai calado, pelos poros entra o ar que corrói as vísceras com imenso prazer, em algum lugar um corpo agoniza porque as primeiras luzes lembram que os desejos são perecíveis com a aurora, o sol quer nascer e quantas nuvens contrariam sua vontade tornando o domingo nublado e as têmporas das crianças — frias no jardim fetal.

 

 

 

IV

 

A madrugada é a continuação do primeiro caos. Silício na atmosfera rompida, insolentemente, pelas estrelas. Olhos rolaram pelos montes e Sísifo-escaravelho-cansado não os levará de volta ao rosto. Estão tateando o tempo, eventualmente pregos nas mãos. O sangue que circula não é sentido com a mesma intensidade de quando escorre. Numa mesa de operação ao ar livre o nome sedado e aberto, dentro dele um rio escarlate e a inédita fúria do peixe que bate a cabeça contra as vísceras — margem do corpo.

 

 

 

V

 

Ciclo alegórico, espelho planetário, branco portal de ativação, na lua o coelho dos ascetas respira no ritmo dos calendários maias, avista todas as construções e ruínas, dorme na cratera elevada. O sol nasce no canto do céu e logo o céu inteiro é um mar laranja, ondas nuvens, estradas rios, estamos afogados nos ecos dos nossos corpos, dos outros corpos, dos que nem sabemos a existência. Conexão líquida, orgânica, perceptiva, invisível fluxo por onde tudo passa e nada se mantém intacto — do início ao fim — as calopsitas atravessam os espaços, gritam alguma coisa e somem — estratégias amplificadoras de silêncios — as cascas de ovo, perfuradas, igualam-se aos abismos.

 

 

 

VI

 

Deus afia a espada no dorso do esquálido firmamento e abre um buraco vermelho no céu, primeiro caem as cabeças dos justos, depois cai Ícaro e suas asas são negras vertigens — o desassossego do anjo que grita como asno enquanto avista o buraco azul no centro da terra, onde as sombras agarram-se às frestas esperando a morte de suas consciências, entre a lava e o dilúvio nenhuma árvore erguida, os olhos dos homens arregalados ou fechados para sempre.

 

 

 

 

 

 

SANGRE MATER

 

 

Nos rostos pasta d'água

nos olhos marcas negras

representam o início e o fim.

 

 

Palco italiano - Ato I

 

 

Mãe evoca o filho

com um rasgo de luz na boca

diz: 'perpetuai a nossa espécie!'

 

Luz dura nas têmporas do filho

com uma espada imponente na cintura

diz: 'jamais cometeria esse mal'.

 

 

(o olhar do filho segue as costas da mãe,

ela dirige-se à janela. o filho sai)

 

 

 

Campo de batalha - Ato II

 

 

Filho convoca o inimigo

com a arma afiada para o corte

diz: 'serei eu teu salvador?'.

 

O inimigo não clama piedade

mas com a mão agarrada à terra

diz: 'nenhum mal será minha redenção'.

 

 

(o filho degola o inimigo e beija-lhe a testa)

 

 

 

Palco italiano – Ato III

 

 

Pai evoca o filho

com desconfiança na farda e passos limpos

diz: 'seria tua mãe capaz de seguir as leis da traição?'.

 

O filho põe-se diante do pai

com sarcasmo na voz e a farda suja

diz: 'acredito na justiça'. 

 

 

(o pai dirige-se à janela e o filho sai)

 

 

 

Campo de batalha – Ato IV

 

 

A morte evoca o inimigo

para que ele seja instrumento da sua vontade

o inimigo convoca o filho

para que nas suas mãos ele pague por seus pecados

ao redor os cavalos agonizam

ao redor os corpos já não sabem a dor.

 

Inimigo diz:

 

'Diga-me tu, assassino do meu irmão,

onde quer que eu lhe beije?'.

 

Filho diz:

 

'Beije-me a testa e eu e teu irmão

nos encontraremos no mesmo lugar,

teria o meu assassino o nome de meu pai?!

Atenderia por Mephisto, a sombra que te persegue em silêncio?!'.

 

Inimigo diz:

 

Achas, que neste instante decisivo as tuas dúvidas serão sanadas?

Achas, que no auge do meu poder eu lhe concederia tal alívio?'.

 

Filho diz:

 

Ao contrário do teu irmão, eu clamarei piedade!

E eu, na tua posição, nem sequer perguntei o nome daquele corajoso homem!

Certamente não te importas com o meu, qualquer resquício de afeto seria um risco                  

para  o desfecho natural desta tragédia, não concordas?! Diga-me!'.

 

 

O arquétipo da morte consome o filho

mas antes o filho é consumido pelo sangue

mas antes o filho pensa pela última vez na mãe

e o inimigo não lhe beija a testa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Camila Vardarac (Rio de Janeiro/RJ, 1987). Observadora por natureza, escritora por impulsão — pela necessidade (recorrente) de expressar-se em prosa e poesia. Voyeur da realidade e de suas representações, encontrou no cinema um meio de materializar suas ideias no continuum do espaço-tempo, desconstruindo-se em impressões. Publicou textos em sites e revistas eletrônicas como Cronópios, Triplov e Zunái.