FAC — FACA — FAC–SÍMILE (Detalhe) | Angelo Marzano | Desenho s/Papel | 2006

 
 
 
 
 


 

O romance (fragmento)

 

 

Loa ao Luar

Poente abrasando o cio da tarde.
Virgindade da noite lacerada.
Meditas em silêncio na sacada
grão da vida em felicidade, arde.
 
Loa ao luar, ouro em pó baila,
Cintilando as águas claras,
Recende o cânhamo pela sala,
Teus olhos azuis — jóias raras.
 
Memória: ando pela areia escura
Abraço a morna pele da ninpha de ouro.
Chuí, testemunha da nossa aventura:
 
Poesia cavalgando — potro sem sela.
Saber que te amar é possuir todos os tesouros.
Teu corpo, meu corpo, em lençóis de estrelas.

 

Pousou o olhar na foto do livro Crepúsculo. O dedo indicador desenhando os traços do poeta Pablo Arrabal. Os perfeitos traços: testa nem ampla, nem estreita e o azul profundo do olhar que ela adivinha naquela foto em preto e branco. A boca que sorri sensual como se ele fosse um deus que chega para seduzir todas as musas.

As mãos dela bailando o áspero papel do livro antigo enquanto bebe o suco de laranja. Hipnotizada pela foto recordando o sonho. Sonhara com Arrabal. Um sonho apocalíptico. Ele correndo por uma cidade deserta. Seria o Rio de Janeiro? Ruas repletas de tanques, jornais espalhados, cartazes. Cenário abandonado pelos manifestantes de uma passeata. Apenas Arrabal correndo por entre os destroços enquanto soava estridente uma sinfonia. Alta, cada vez mais alta, quase estourando os tímpanos. No limite do volume, em desespero, ela acordou.

Que música era aquela? Pensou, diante do computador, desejando terminar a resenha do livro de Pablo Arrabal. Logo o nome da música bailou na memória — Concerto de Aranjuez.

Nunca uma matéria a hipnotizara tanto. E nunca um escritor raptara suas longas horas dedicadas a falar sobre livros para um grande jornal.

Bárbara roia a unha do seu polegar direito diante da tela do computador. Quase à carne viva. Quase não havendo o que roer. Ouvindo longe o eco da voz da avó.

"Tire o dedo da boca menina. Só pode ter herdado do pai esta mania de roer unhas".

Mas, quem era o pai? Ela não sabia ninguém sabia. Quando levava flores do campo ao túmulo da avó ela tinha vontade de perguntar.

— E então, quem é o roedor de unhas? Como ele era?

Procurara vestígios pela vida. Pelas gavetas, armários, nas caixas de fotografias e até nas correspondências. Nenhuma evidência. Nenhuma.

Em cada gesto de roer unhas uma identificação com a nebulosa imagem — feita de nuvens e detida atrás de um véu lilás de segredos.

Era preciso terminar a matéria. Era preciso escrever sobre o poeta Arrabal.

Estava desconcentrada e não conseguia.  Desligou o computador. Apanhou o livro.

Ali estava a alma do poeta. Uma única edição. Um único vestígio de alguém que desapareceu no Rio de Janeiro em um dos anos mais conturbados da época da ditadura — 1969 — Arrabal é visto dobrando uma esquina. O que havia naquela rua? Como ele pôde desaparecer no vento? 

 

 

Razão

Pietra — a semente primeira. Eu a criei em 1999 quando li — abismada — a obra de Joaquim Nabuco. Na Ilha de Paquetá, ela se apaixonaria por Quincas, o Belo (Joaquim  Nabuco) e narraria esse amor em um diário que uma neta encontraria muito tempo depois, quando fosse retirar os pertences da avó daquela casa. Em 1999 Minha Formação abalou minha alma feminina. Eu me apaixonei por Joaquim Nabuco. Amei Nabuco pela Liberdade de sua Alma e pela Liberdade que ele insistiu em conceder aos negros no Brasil. Ao escrever aquele livro — abortado —  senti que profanava a grandeza de Nabuco com a audácia do meu amor platônico. Arquivei a ideia e segui em frente.

Solidão calcinada surgiu em ritmo de desvelamento. Amálgama de discursos interiores que vieram à tona. Meu desejo de poeta, viver ilhada como o personagem Pablo Arrabal. O desejo de falar sobre os jovens rebeldes perseguidos e mortos pelo governo ditatorial nos anos 1960 e 1970. O desejo de narrar uma miríade de amores: os amores que começam nos corredores escolares — como o namoro de Bárbara. Os amores decapitados pelas circunstâncias e os golpes da vida (militares ou não) como  o amor de Serena (a mãe de Bárbara) que é o romance central do livro. Os amores clandestinos, como a ligação perigosa de Esperança. O amor de Pietra na Ilha de Paquetá, sendo Nabuco substituido por Giancarlo — o belo italiano.

Quando recebi do José Aloise essa tarefa de narrar a gênese desse romance, percebi a dificuldade que tenho como autora em dizer — como e quando nasceu a ideia primordial. Não se explica um poema e também não se explica um livro. Resta dizer que ele é a voz interior de um autor. A essa voz, somamos os ruídos de seu tempo, a luta interior contra tudo que o incomoda e a aproximação sublime de realidades que em seu espaço/tempo são impossíveis. A Literatura é o Espaço da Liberdade. Aquela que Nabuco soprava em seus discursos inflamados. Aquela que os jovens rebeldes sopraram ainda que com suas cinzas e ossos em cemitérios talvez nunca encontrados. A Liberdade que as mulheres sopram desde o início da vida na Terra. Por isso, é muito complexo dizer em que momento nasceu esse livro. Mas eu recordo: o ano — 2005 —, manhãs claras, aroma de café que vinha da cozinha, o vento da Liberdade a puxar um fio e uma jovem mulher que — a partir de um livro de poesia — sai em busca de um pai desconhecido e no caminho vai nos apresentando as mulheres de sua família.

 

 

dezembro, 2009
 
 
 
 
Bárbara Lia (Assaí/PR). Escritora, publicou O sorriso de Leonardo (Curitiba: Kafka Edições Baratas, 2004), Noir (Edição do autor, 2006), O sal das rosas (Lumme editor, 2007), A última chuva (Belo Horizonte: ME, Editora Alternativas, 2007) e Solidão calcinada (Romance, Secretaria de Estado de Cultura, Imprensa Oficial do Paraná, 2008). Escreve o blogue Chapar as Borboletas. Vive em Curitiba.

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