JOÃO CHEIO

 

Com apenas um real

joão comprou a esperança:

apostou na loteria.

sua chance de acertar em cheio

é de uma em um zilhão

mas joão não quer saber disso,

joão está cheio dessas regras.

revogue-se a lei das probabilidades!

revoguem-se as disposições em contrário!

revogue-se a lei da gravidade,

joão quer voar!

(olhando bem, joão parece um balão

cabeça cheia, cabeça oca).

joão quer sonhar

com ficar rico, não trabalhar

dar com um pé no patrão,

comer na mesa farta

ter a mulher que queira

na cama que escolheira

falar como achar milhó

atropelar a gramática que nunca teve

errar nas contas que nunca foram a seu favor.

joão tem pouco dinheiro:

só o do ônibus cheio em que cochila à noite

e o da esperança vazia no bolso furado.

acorda, joão!

tua parada chegou,

vai pra casa, abre o refrigerador vazio

bebe água gelada, dá um beijo frio

em tua mulher de ventre cheio,

depois dorme, e sonha, joão

porque amanhã é outro dia

cheio.

 

 

 

 

 

 

NEM TODOS OS POEMAS SE EDITAM

 

Nem todos os poemas se editam:

alguns não servem pra nada

além da distração do autor.

foram simples tentativas

sumirão sem ser notados

sementes que não vingaram

ovas que não germinaram.

não terão fortuna crítica

nem aplauso, e nem vaia

enfim, re nulla, não mais.

E quanto aos que se publicam:

por que haviam de ter

serventia que não fosse

a sua só existência?

Os poemas são assim —

bastam-se a si, nada mais

o que não é pouca coisa

no mundo em que, aliás,

tanta inutilidade

bem polida e embalada,

passa por ser necessária.

 

 

 

 

 

 

DEVIAM EXISTIR UNS ANJOS

 

Deviam existir uns anjos

que amassem, durante as madrugadas

todas as mulheres tristes

todas as mulheres feias

as mal-amadas, as desamadas.

Então só haveria na face da terra

mulheres serenas e felizes,

com aquele brilho nos olhos que mostram

quando estão apaixonadas e são correspondidas.

E este pobre mundo conheceria enfim

o que é parecer-se com os jardins do Éden.

 

 

 

 

 

 

IMPRESSÃO

 

E não podendo ele virar ao contrário

a ampulheta

nem sequer impedir a passagem dos grãos

de areia

contentou-se em sentar a uma mesa azul

de um bar de ladeira

onde, olhando o crepúsculo, teve a impressão

de que tudo estava calmo.

 

 

 

 

 

 

PAISAGEM DA JANELA

 

Uma nuvem cor-de-rosa

tangencia a lua cheia

assim dizendo, se roçam

de longe vendo, se enroscam.

Talvez conversem, nuvem e lua

talvez se beijem, a lua nua

talvez estejam no cio

decerto tudo é macio:

uma nuvem cor-de-rosa

e a lua cheia de abril.

 

 

 

 

 

 

DE SEMPRE

 

Foi quando morri. Apareceu-me um anjo.

Grande, sereno, imperturbável.

— Que fizeste lá?, perguntou-me.

— Nada. Alguma poesia.

— Isso muitos fazem, retrucou. Que mais?

— Respirei.

— Isso, mais ainda. Algo mais?

— Dormi, sonhei, o de sempre.

Olhou-me sem paixão. Era um anjo

(não havia como enganar-me,

embora não mo tivesse dito).

Fez menção de ir-se. Perguntei-lhe:

— E agora?

— Nada. É aguardar.

— Ele?

— Quem mais?

— É verdade que usa barbas? Sempre achei esse fato

extraordinário.

Quase riu. Mas era um anjo,

estava a serviço.

Voltou-me as costas, mas antes de ir

disse-me:

— Toma. Vou emprestar-te.

— ?

— A antologia poética organizada aqui.

— !!

E tirou, não sei de onde,

um grosso volume, que passou-me.

Grande, sereno, impassível.

Interpretei esse gesto como um ato de simpatia

(embora não mo tivesse dito).

Após o que, foi embora caminhando,

nunca mais o vi.

Ainda não sei se Ele tem barbas.

Enquanto isso, tenho ocupado meu tempo

a ler o volume, a respirar,

dormir, sonhar, o de sempre.

 

 

(imagens ©jaroslav)

 

 

  

 

Walter Cabral de Moura. Publicou, por conta própria, Brilha, cosmos  (1975) e Livro dos silêncios (2000), ambos de poesia. Participou das coletâneas Fauna e flora nos trópicos (2002); Pernambuco, terra da poesia (2005); e Antologia de Escritas nº 4 (2007). Na internet, tem poemas aqui e ali, inclusive no Livro dos Silêncios. É membro da União Brasileira de Escritores (UBE-PE) e funcionário público federal.