O TESTAMENTO DE M.

 

Após uma reunião

de pássaros

da qual também participaram árvores

lagartos e musgos do chão

 

foi decidida a partilha dos

bens de Manoel

 

bem como lidos os

tópicos do testamento,

uma a um expressando

os desejos do morto,

sob a voz grave da amendoeira:

 

1.

                  Eu enquanto noite

Talvez amanheça

 

E deixe escorrer o dia

Pela bordas de minha orelhas

 

2.

Ofensa é palavra

De abrir pedras

E eu as prefiro como são:

Fechadas pela mão do tempo

 

3.

Amar é verbo de segunda pessoa

 

4.

Esconder e esquecer

São sinônimos gentis

 

5.

O cupim é como a gente

Com fome

Engole até pedra

 

6.

É preciso fabricar

Uma constelação de passarinhos

Para abrir a aurora

Em sol maior

 

7.

De tanto sonhar árvores

e imaginar inutilidades

tornei-me

especialista em desver

 

 

8.

Com lagartos e pregos enferrujados

Fabricar uma estrela

 

9.

O caramujo

É uma astronave que rasteja

 

10.

Os cães dizem latindo

O que muitos

Passam a vida inteira

Sem conseguir dizer:

Palavras de amor

 

11.

De tanto sonhar nuvens

Amanhei cheirando a chuva

 

12.

Há engenharia

No arranjo dos galhos

Caindo por sobre o muro

 

13.

Tudo que é velho

E foi jogado fora

Compõe em mim

Partituras de abandono

 

14.

Desaprender é dester as coisas

 

15.

Brinquedear:

Escrever para dizer coisa nenhuma.

 

16.

Brinquedo em f:

Flora florando

Florindo faz

Fugaz o dia

 

17.

Toda árvore anda

Sempre em direção ao céu.

 

18.

No ferro velho

As lembranças adormeciam

E a minha presença

Acordou memórias vadias

 

19.

Lembrei

Esquecendo de esquecer

 

20.

Poesia é ilusão poética

Não é tátil

Como a rosa

De pétalas abertas

 

 

 

 

 

 

RECEITA

 

 

Pegar

 

 a primeira pedra,

 

avistar

 

 a vidraça mais

 

bela,

 

jogar

 

 e depois correr.

 

 

 

 

 

 

MÁQUINA DE BROTAR

 

foste o belo que se abriu na pedra

musgo verde 

brilhando com o dia  

melhor que qualquer flor de prateleira.

 

 

 

 

 

 

uni duni tê

é fato, não sou exato, mas me diferencio dos ratos pela minha condição.

à luz dos afazeres espero que os meus deveres não entrem em contradição com o que tenho e mesuro,

entre o absurdo e o vértice da ilusão, este lugar de espaços onde os passos vez por outra dão num vão

de fato, ato e desato as pontas desta canção,

 tal qual o mágico que esquarteja sem sangue e parte a moça na caixa,

 eu parto meus pedaços

 e construo

 palavras

          de perdão

 

 

 

 

 

> Mais poemas de Tainan Costa no livro Açougue, disponível para download.

 

 

 

(imagens ©anajanka)

 

 

  

 

TAINAN COSTA Wanderley de Carvalho. Vulgo Canário. Autor, professor, ator, desenvolve trabalhos ligados à publicação e divulgação da literatura produzida em Alagoas. Escreve periodicamente no Guia Interativo da Cultura Alagoana e participa de ações culturais por meio do grupo "Coletividade Sagaz", produzindo música, poesia eletrônica e videopoemas. Foi premiado na primeira e segunda edição do concurso "Alagoas em Cena", na categoria poesia. Teve seus poemas selecionados pelo SESC-Alagoas para encenação no projeto "Poesias em Cena". Como editor, responde pelas Edições Canárias, editora independente, pela qual publicou Duo (2004) — em parceria com o também professor Beto Brito —, e Açougue (2007).