Joaquim Palmeira - "Sair das sombras das ruínas" é o mesmo que abandonar o sol da infância, Salomão Sousa?

 

Salomão Sousa - Seria o mesmo que "a cor do macaco quando foge". Abandonamos sempre e estamos sempre no mesmo. A poesia é estar aí a esmo, achando que a vida é uma eterna infância.

 

 

JP - Safra quebrada mostra imagens de uma natureza em estado virgem. Alberto Pimenta no poema "Romantismo" revela metáforas no paradoxo entre "floresta" e "virgem". E para você: "Silvânia" é a "Pasárgada", ou o "Cachaprego"?

 

SS -  Pásargada fica no futuro, Silvânia fica no passado. Silvânia está mais para "em busca do paraíso perdido", ou fudido. Não estou em busca, mas em reconstrução daquilo que não pude ou não tive. Realmente estava tão perdido que estava "virgem", numa pureza desgraçada. Talvez eu queira desmontar o passado sempre, para ver o que a infância não me deu: só poesia.

 

 

JP - Quando "a sede viola" sua poesia, mostra que é possível abandonar e não se abandonar, a exemplo da fala de Riobaldo: "Fui e não fui, sou e não sou. Não serei, não estarei. Que Deus seja e esteja. Eu, o aberto"?

 

SS -  Resolvi todos os rancores e todas as perdas do meu passado. A poesia teve fundamental papel na reorganização de minha vida, já que Deus deixou de estar. Nunca me abandonei: se busco sempre, se aspiro. Fui o que não deixavam, e achei o que não sou.

 

 

JP - Escrever é preservar as origens na linguagem ou a poesia é um Fernando Pessoa dizendo "um fingimento deveras"?

 

SS - Escrever é fingir que renovamos a linguagem. Morremos com a linguagem: se a nossa escrita está envelhecida diante do que se fala.

 

 

JP -  Dez livros em Safra quebrada mostram um poeta em desespero com a vida, talvez em busca de "um signo que supere a vida", como na epígrafe de Salvatore Quasimodo. Realmente isso pode ser possível, ou "O drama se lavra/ desde o princípio"?

 

SS -  Um dia visitei Oswaldino Marques e ele me saudou na saída: eu esperava um homem triste, no entanto, irradias alegria. Acredito que a poesia é aquilo que não somos. Se a poesia se parecesse com o homem, brigaríamos com ela a partir do primeiro verso.

   

 

JP - Se a sua poética apresenta também uma antena com o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), como "não deixar nem rastro na pradaria"?

 

SS - Quase caio na poesia engajada, quando comecei a fazer meus primeiros poemas. A miséria nos atingia e o regime militar me prendia em casa e nas salas de trabalho. Tinha tudo para apregoar luta e resistência. Mas queria muito viver - talvez essa determinação tenha me salvado da tortura e do engajamento pura e simplesmente. O MST, acredito - irá puxar outros movimentos sociais.

 

 

JP - E as cidades satélites de miséria na redoma de Brasília, que mundo de candangos é esse de árvores do cerrado, puxando o verso "Salvar a última madeira"?

 

SS - Desde sempre, ou desde 1971, moro na periferia de Brasília (Taguatinga, Ceilândia, Núcleo Bandeirante). A violência já bateu em minha porta, mas é possível esquecê-la, pois a humanidade bateu com mais força. Tenho grandes amizades nessas localidades. E pouco pude fazer por essas comunidades. Trabalhamos pouco, na modernidade, pelo outro.

 

 

JP - "Gleba dos excluídos" contém um Brasil com as "safras" sobre um "chão de urtigas", exemplo solar que dissipa uma poética política: "No primeiro ano de casado,/ a roça deu maravilhas", "Daí a roça se afastou/ para os matos de mais longe", "Agora, no décimo filho,/ nem mesmo plantou". Salomão Sousa, esse é o drama de um país agropecuário?

 

SS - A questão rural, acredito, é delicada em todo o Globo. O Capitalismo provocou essa dicotomia. Ao mesmo tempo que a vida se garante original, sadia, na zona rural não há a velocidade, o colorido. O homem moderno inventou o caos e tem carência dele.

 

 

JP - Quem é esse "diante de um relâmpago de ouro" que diz "cheguei com o paiol" e quer "impedir a tempestade" na conjugação "somos os encarregados de impedir as trevas"?

 

SS - Não sei que metáfora inventar para responder o que já respondi com metáforas. Quando faço poesia, não me preocupo em seguir uma mesma linha de ação. Cada poema é um corpus, que alimenta um estado de animus (se é que essa palavra existe). O tempo tem seus instantes de trevas e seus instantes de trovas. Num instante, posso desejar uma tempestade para derrubar algo que me sufoca; e noutro instante, quero apaziguar a tempestade que já tomou o meu tempo.

 

 

JP - Se a metáfora é um código de secreção, o que há de secreto em sua poesia, que mesmo vivendo em uma cidade serrada por Oscar Niemayer, ainda preserva o menino de Goyaz?

 

SS - A minha poesia é esta encruzilhada em que estou: a modernidade de Brasília e o medieval de Goyaz. Só o medieval seria tacanho: mofo. Só o moderno seria um ovo: um branco que nunca se quebraria.

 

 

JP - Falando por memória, o que ainda guarda do menino original que hoje habita, inclusive, as terras virtuais do blogue Safra Quebrada?

 

SS - O que resta do menino goiano, da beira do rio Calvo: apenas a memória involuntária. Não posso dizer: sou da beira do Tejo. Sou da beira do Calvo: lembro lambaris, andorinhas. Se eu pudesse guardar algo de minha ancestralidade, eu guardaria a inocência. Aquele menino que foi tantas vezes vilipendiado por outras crianças. Só com essa inocência a poesia ganha nobreza.

 

 

JP - "Poeta-geral" (Brasigóis Felício) ou pensando em Mário Benedetti — "Só quando transgrido alguma ordem, a vida se torna respirável" — rememorado por Ronaldo Cagiano em "A poética da consciência e do combate", como foi, Salomão Sousa, a sua passagem de despedida concreta à geração marginal?

 

SS - Estive onde a poesia marginal estava. Só que eu vinha de vastas leituras do Romantismo, do Modernismo e do Barroco. E estava sendo atingido com os socos do Concretismo. Não conseguia ser puramente Marginal. Há poemas meus que misturam Marginalidade e Concretismo. Por isso, nem se lembram que eu estava ali.

 

 

JP - E como você entende as experiências de circo das poesias concreta e marginal, puxando a sua própria fala ao revelar "aprendi mais com a natureza", que me lembra a Arte Poética do chileno Vicente Huidobro, com o Movimento Poético "Creacionismo"?

 

SS - Neste ano devo escrever um arremedo de arte poética. Não estamos mais preocupados com o ato da composição. Ainda estamos naquela de achar que tudo que achamos conto é conto, e tudo que chamamos de poesia é poesia. Cada tempo tem a sua poesia. Não podemos mais fazer uma poesia simplesmente frasal, com sujeito, predicado e complemento. Se filhos do Concretismo e do Surrealismo, não podemos acreditar na morte da poesia: mas no nascimento de um verso autônomo, com palavras autônomas, desligadas de muitos elementos de ligação. Quem acredita que é só lirismo, já morreu. Temos de saber existir no vazio.

 

 

JP - Ainda "com a natureza, aprendi a liberdade", pode dizer, Salomão Sousa, que poetas vivos de agora escrevem com "poetry is to inspire" (Dylan) na rememória de Cartas a um jovem poeta, de meu querido e inesquecível amigo Rainer Maria Rilke?

 

SS - Temos a liberdade de poder inventar: mas não temos a liberdade de sermos velhos. Quando envelhecemos - a morte nos atinge com mais rapidez. O poeta jovem quer escrever, sem consciência, crente que basta a naturalidade. O ato de criar exige aprendizagem como qualquer outra. Há o lugar certo de aplicar o prego e o lugar exato de pregar a palavra.

 

 

JP - Viver "deixa saudades à beira do rio Calvo" ou "O susto de viver" com a morte nos calcanhares arremessa as "Ruínas ao sol" quando pede "silêncio! recomendam"?

 

SS - A poesia nos remete sempre para a metáfora do passado. Mas o passado está sempre desconstruído. Visito o rio Calvo e ele é menos da metade do que era na minha infância. No passado não estão os mesmos rios, não estão os mesmos rostos. Ir para o passado é perder o rosto do presente.

 

 

JP - Afinal, Salomão, sendo um Sousa com "ss" como João da Cruz e Sousa, o que pensa sobre o desespero de Hilda Hilst em ser lida, quando afirma "sinto-me livre para fracassar", eivando para a poesia o corpo em incandescência?

 

SS - A poesia é um terreno como qualquer outro. Às vezes fértil e quase sempre aspereza de pedra para gerar o fracasso. E, assim como na infertilidade da terra, em que a semente morre sem se dar por isso, o também esperneia acreditando numa fertilidade inútil.

 

 

JP - "Catatau" ou "Galáxias" ou "Poema Sujo": o que é ser híbrido, pensando nas sementes de milho híbrido, quando muitos escrevem com a "síndrome da influência"?

 

SS - "Catataus" e "Galáxias" existem para entulhar o caminho, para pararmos para perguntar se não estamos perdidos. Apalpamos, lambemos, escutamos, e seguimos por outro caminho. "Poema Sujo" é do meu tempo passado. Ele não tem mais nenhuma correlação com a poesia contemporânea. Marcou o final de nossa Ditadura. A poesia queria estar presente naquele tempo, e Ferreira Gullar estava lá do outro lado para trazê-la.

 

 

JP - E Bruno Tolentino? Apesar dos achaques e dos ataques de metralhadora contra Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Caetano Veloso, o que pensa sobre as purezas de uma poesia criativa em estado de tradição?

 

SS - Estive com o Bruno Tolentino aqui em Brasília, e quase o esgano. O cara se metia em realidades que não lhe pertencia e acabava dando com os burros n'água. Temos de ter cautela ao apregoar coisas estrangeiras nos países que freqüentamos. A polêmica não está na poesia, mas em quem pratica a metáfora. Sou a favor da tradição enquanto equilíbrio, medidor de águas, mas não como prática. Só agora a poesia brasileira vai absorver as contribuições dos irmãos Campos: pois só agora a poesia vai entrar na modernidade. A nossa modernidade era canhestra: pois era muito mais que prosaica.

 

 

JP - A poesia verbal é um instrumento a favor da língua ou a língua é a mutação de uma fonética em metamorfose?

 

SS - Há três meses ou mais e essas perguntas tuas não acabam. Quantas pessoas ajudaram neste questionário? Mas vamos à pergunta: a poesia que for pelo uso popular da língua está fadada à inutilidade. O encanto está em saber que a construção da língua, na poesia, se dá noutra fonética, noutra iluminação. A página é como um palco: as palavras exigem mais luz, melhores arranjos.

 

 

JP - A propósito da poesia falada ou cantada, o que pensa sobre a experiência de poetas que transformam o corpo e a voz em espaço físico da performance?

 

SS - As formas estão cansadas. A dança se cansou, e na impossibilidade de fazer poesia, se ilude na máscara. A poesia se cansou, e na impossibilidade de ser dança, se mascara. E acabamos descraditados: quem vê sabe que nem uma não é outra coisa.

 

 

JP - E a polêmica entre letra de música e poema: letristas são poetas ou letristas são compositores e poetas são poetas e pronto e fim?

 

SS - Poetas são poetas e letristas são letristas, e ponto final. A diferença é que os letristas escrevem ridicularias e ganham dinheiro; e vivem na misérias os poetas que iluminam com belos arranjos as palavras.

 

 

JP - Vim de Rio Paranaíba, interior de Minas Gerais, onde vivi até onze anos, e quando saiu um livro por lá, onde trazem alguns poetas do meu lugar de origem, sequer fui lembrado. E você com Silvânia, que vínculos contém no sangue e na seiva?

 

SS - Silvânia é tão pequena que não dá pra fazer uma antologia de poesia. Mas quase nunca sou lembrado em Goiás que sou goiano. A partir de Safra quebrada que isso passou a ser quebrado. Mas não me preocupo muito. Acredito que fazemos é da porta pra fora. Se fazemos da porta pra dentro vamos ficar sempre no mesmo lugar.

  

 

JP - "Filhos da luz, luz do criador, iluminai-me". Paz é luz, Salomão Sousa? 

 

SS - A paz exige uma borrachada de vez em quando. E pelo que a luz está iluminando, está quase chegando a hora.

 

 
julho, 2008
 
 
 
 
 
 

Salomão Sousa (Silvânia-GO, 19/09/52). Mudou-se para Brasília em 6 de janeiro de 1971. Jornalista do Poder Executivo, trabalha atualmente em assessoramento parlamentar pelo Ministério do Trabalho. Participou do movimento da Poesia Marginal, no final da década de 70, principalmente com Esbarros. Nessa época, assim se manifestava Jorge Amado sobre Salomão Sousa: "Um poeta de primeira ordem - original e humano, sensível e consciente. Poesia que não é cera, é chama". Organizou as antologias Em canto cerrado (de poesia) e Conto candango, com escritores de Brasília. Esta última está registrada como obra de abonação da Enciclopédia de literatura brasileira (1990), de Afrânio Coutinho, principalmente do verbete Literatura, Candanga. É um dos 47 poetas incluídos no número que a revista portuguesa Anto dedicou em 1998 à literatura brasileira em comemoração aos 500 anos da descoberta do Brasil. Participa da Antologia da nova poesia brasileira (1992), de Olga Savary; e dA poesia goiana do século XX, de Assis Brasil. Bibliografia: A moenda dos dias (Brasília-DF: Ed. Coordenada, 1979); A moenda dos dias/O susto de viver (Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira em co-edição com o INL, 1980); Falo (Brasília-DF: Ed. Thesaurus, 1986); Criação de lodo (Brasília-DF: edição do autor, 1993); Caderno de desapontamentos (Brasília-DF: edição do autor, 1994); Estoque de relâmpagos (Brasília-DF: Secretaria de Cultura do DF, 2002); Ruínas ao sol (Prêmio Goyáz de Poesia. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2006); Safra quebrada (Brasília-DF: Patrocínio do Fundo de Arte e Cultura, 2007). Editou o zine Chuço (premiado em Aracaju-SE). Tem crítica literária e poemas publicados em diversos jornais do país, tais como Suplemento Literário de Minas Gerais, O Popular e Correio Braziliense. Em 2001, ganhou o Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária da Secretaria de Cultura do Governo do Distrito Federal, com o livro Estoque de relâmpagos (poesia). Está organizando a antologia Alguns poetas de Brasília para a I Internacional de Brasília, que será realizada em setembro de 2008 pela Biblioteca Nacional de Brasília.

 

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Joaquim Palmeira. (Rio Paranaíba-MG, 1965). Poeta, dramaturgo, ator, performer, publicou 12 livros de poesia, entre eles,  Estilhaços no lago de púrpura. Organizou a antologia O achamento de Portugal (2005, Prêmio Aires da Mata Machado, versão 2005/2006, da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais). Tem poemas publicados no Suplemento Literário de Minas Gerais, Revista Dimensão, Revista Apeadeiro (Portugal). Tem poemas traduzidos e publicados nas revistas Jalons (França) e Sìlarvs (Itália). Selecionado para o Museu da Língua Portuguesa, São Paulo/SP. Curador do projeto de poesia "Terças Poéticas" - nos jardins internos do Palácio das Artes, em Belo Horizonte/MG, onde vive.

 

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