"todo escritor cria seus precursores. Sua obra

modifica a nossa concepção do passado, como

haverá de modificar o futuro".

Jorge Luis Borges

 

a.                 O parricídio primordial, a arte e os artistas

 

Em Totem e Tabu (1999), Sigmund Freud (1856-1939), numa aventura antropológica fundamentada em Charles Darwin (1809-1882), apresenta um ensaio, em que anuncia a existência de uma horda primitiva liderada pela figura de um pai déspota, violento e possessivo, a quem eram destinadas todas as mulheres e todos os prazeres e gozos. Conforme os filhos cresciam e, portanto, tornavam-se rivais em potencial do pai, este os expulsava, evitando assim qualquer risco de competitividade na busca de dominação da horda. Não conformados com essa, avaliada e julgada, injustiça, os filhos reúnem-se, discutem e tomam uma difícil, porém, necessária resolução: matam o pai e, num banquete antropofágico, devoram o seu corpo, buscando, dessa forma, igualar-se a ele, em força e autoridade. Após esse parricídio antropofágico, os filhos passam a dividir o poder, os gozos e as mulheres da horda, sem, no entanto, deixar de serem rivais entre si. Um novo dilema, porém, se instaura ente eles: nenhum deles poderia tomar o lugar do pai, posto que, se assim o fizessem, haveria o risco de o parricídio se repetir ad infinitum. Os filhos criam, então, alguns mecanismos para que a convivência na horda se torne possível. Estabelecem, por exemplo, uma lei contra o incesto, que consistia na proibição do casamento entre os membros da mesma família, sendo só permitida a exogamia, ou seja, a união entre membros de tribos diferentes ou, se no âmbito da mesma tribo, entre membros de clãs diferentes. Estabeleceram, também, que, uma vez por ano, realizariam um ritual antropofágico em que matariam e devorariam o animal totêmico representativo do pai, para que, dessa forma, a memória do genitor fosse revivida e, ao mesmo tempo, que esse ato reafirmasse a ordem, a lei e a moral criada por eles. Para Mezan, "A refeição totêmica, talvez a primeira festa da humanidade, seria a reprodução comemorativa desse ato criminoso e memorável, que constituiu o ponto de partida das organizações sociais, das restrições morais e da religião" (1997, p. 38).

Apesar dos instrumentos criados pelos filhos para a construção de uma boa convivência, um aspecto fundamental em relação ao parricídio cometido por eles não foi possível superar: a culpa. A culpabilidade instaurou uma ambivalência em seus sentimentos: por um lado, o ódio que sentiam pelo pai por privá-los do usufruto do poder e do prazer, mas, ao mesmo tempo, um grande respeito e admiração por tudo que ele representava. Perplexos, os filhos perceberam que, apesar do ódio que devotavam ao genitor, após a sua ausência sentiram também que o amavam. Porém, uma vez que o haviam matado, esse amor mutara em remorso. Então, aquele pai que era demasiado forte em vida, tornou-se muito mais poderoso após sua morte. Se o fito do parricídio fora apossar-se da faustosa vida do pai, eis que, aparentemente, o crime não compensou, já que sua figura, agora, manifestava-se por meio de outros níveis de proibições e privações. Em outras palavras, os sentimentos hostis que os filhos sentiam em relação ao pai não se desvencilhavam de uma amorosa nostalgia paterna.

Se atribuirmos a condição de pai aos artistas precursores ou fundadores de uma determinada maneira de lidar com uma determinada linguagem artística, teremos, na condição de filhos, aqueles artistas que, de algum modo, copiam, recriam, destroem, complementam, revêem, enfim, se apropriam do labor artístico original de seus mestres. Conforme esse "parricídio antropofágico" simbólico se dê, teremos uma performance que colocará os epígonos na posição de discípulos que igualam ou superam seus mestres, ou na condição de meros medíocres copiadores.

De uma forma ou de outra, no entanto, os epígonos desejam usufruir do poder, dos prazeres e dos gozos de seus prógonos. Para tanto, é necessário que o filho enfrente, cara a cara, o pai, e que tenha coragem de matá-lo, devorá-lo, arrebatando-lhe a musa. A ousadia desse gesto, no entanto, não livra o filho usurpador de ter também sua carne exposta a outros banquetes antropofágicos, já que, ao devorar o pai, ele também se lança à possibilidade de tomar posse de seu quinhão de originalidade artística, provocando, assim, os olhares buliçosos de seus irmãos de ofício.

Ao que parece, o imponderável dessa questão reside mesmo no que revela os conceitos de antropofagia e de ambivalência. Quando os epígonos se apropriam da obra de seus prógonos, o fazem, porque indubitavelmente consideram-na grandiosa, digna de ser retomada de alguma maneira. Ainda que a forma escolhida para a re-configuração da mesma seja a sua própria des-configuração, permanecerá para sempre a obra original como ponto de partida, não importando se essa tenha sido tomada por amor ou por ódio, por admiração ou por desprezo à genialidade do pai criador.

Isso posto, resta-nos hipostasiar acerca das formas ambivalentes com que os artistas pósteros banqueteiam antropofagicamente os seus precursores, dispensando o artifício judicioso da questão se estes são ou não superados por aqueles, mas atendo-nos, tão somente, à maneira como as obras originais são apropriadas.

 

 

b.                 Os artistas e a "angústia da influência"

 

Arthur Nestrovski, na apresentação da obra "A angústia da influência: Uma teoria da poesia" (1991), de Harold Bloom, dá a seguinte definição do conceito homônimo ao título da obra do crítico literário norte-americano:

 

(...) o sublime — que atende por diversos nomes: a Natureza, a Imaginação, a libido, M, o inominável — não é outra coisa senão a instância do aparecimento e da resistência, ou velamento do precursor. O sublime, na poesia, é sempre (...) o ponto da citação: da citação sublimada. E é precisamente nesta relação entre poetas e precursores que se estabelece o texto da literatura, que é a dramatização de um embate sublime contra as figuras de anterioridade; isto é, uma retórica da influência. A incapacidade de nomear a Imaginação (a Natureza, etc.) pelo que é vai se traduzir, numa cultura cada vez mais tardia, em figuras de anterioridade e modernidade, com uma e outra se alterando como ponto de origem. Em tempos mais recentes, seu nome (...) é "angústia da influência" (...) (199, p. 114-5).

 

Nessa citação, Nestrovski revela-nos uma importante contribuição de Bloom para a crítica literária, qual seja, a da realização de uma "meditação prolongada" sobre a influência exercida de um poeta sobre outro ou, como ele mesmo chamou, de uma breve "(...) estória das relações intrapoéticas" (1991, p. 33). Ao nomear o sublime como a instância do surgimento do aparecimento ou do velamento do precursor, quer ele encontrar o exato momento em que uma grande obra fica em evidência ao ser conflagrada por sua manifestação em outra. É o que ele chama de o ponto da citação sublimada. Esse encontro entre os poetas e seus precursores, estabelecedor do texto literário, implica numa alternância do ponto de origem da arte sublime: ela se dá na investidura do poeta póstero ou se estabelece pela releitura do poeta precursor? Para Bloom, "A história da poesia (...) é considerada como indistinguível da influência poética, já que os poetas fortes fazem a história deslendo-se uns aos outros, de maneira a abrir um espaço próprio de fabulação" (1991, p. 33). Os realizadores dessa façanha, segundo Bloom, são os chamados "poetas fortes". Ou seja, aqueles que conseguem realizar o processo de desvirtuamento do passado, sendo esse gesto "o mais valioso instrumento de sobrevivência poética" (BLOOM citado por NESTROVSKI, 1991, p. 17). Por outro lado, ele aponta, o que chama de "a carga de anterioridade", como, segundo Nestrovski, "(...) enquanto ameaça de repetição, (...) o maior impedimento à formação do poeta, um agente bloqueador alegorizado na figura gigantesca, edipiana, do poeta-pai" (1991, p. 17).

Por essa afirmação de Nestrovski podemos ver a revivescência sobredeterminada do parricídio primordial no âmbito das relações intrapoéticas, tendo as noções de antropofagia e de ambivalência pairando como um leitmotiv irrecusável. Vejamos, por exemplo, o que diz Bloom acerca disso em sua obra programática:

 

Meu interesse único, aqui, são os poetas fortes, grandes figuras com persistência para combater seus precursores fortes até a morte. Talentos mais fracos são presa de idealizações: a imaginação capaz se apropria de tudo para si. Mas nada vem do nada e a apropriação envolve, portanto, imensas angústias de débito: pois que criador forte jamais desejaria a consciência de não se ter criado a si mesmo? (1991, p. 33).

 

Freud, segundo Bloom (1991), via que, através da sublimação, o ser humano alcançava sua mais profunda realização, posto que, para ele, ela significaria a superação dos prazeres mais primitivos por outros mais apurados, o que implicaria em considerar a experiência última como superior à primeira. No entanto, Bloom (1991), apesar de concordar com essa teoria quando diz respeito ao domínio da psicanálise, discorda quando se aplica essa noção ao campo bélico da angústia da influência entre os poetas fortes. Para o crítico norte-americano, há outro elemento nessa questão, que se coloca acima da superação de uma psicopatologia. Há a busca por parte do artista, para além do combate ao pai-criador, a luta em favor de seu antidestino, ou seja, com a realização de sua própria obra, o alcance de sua imortalidade. Sendo esta luta inglória ou não, o incontestável é a sua inevitabilidade. Nessa perspectiva, Bloom afirma que, assim como "Édipo, cego, estava a caminho da divindade de oráculo, (...) os poetas fortes vêm seguindo na mesma trilha ao transformar sua cegueira face aos precursores em percepções revisionárias em suas próprias obras" (1991, p. 39).

Para esse percurso revisionário dos poetas fortes, Bloom (1991) elenca seis movimentos — ainda que os considere, assim como a qualquer taxinomia, arbitrários — como seis razões revisionárias para a compreensão de como um poeta se entrecruza com outro: Clinamen, Tessera, Kenosis, Demonização, Askesis e Apophrades.

Não há como negar que essa terminologia constitui-se num poderoso instrumental de crítica literária e, apesar do trabalho de Bloom estar totalmente voltado para a poesia, o intento aqui é apropriarmo-nos desses seis movimentos revisionários — reconhecendo neles uma possibilidade de exercício para além da influência poética — para realizar uma análise comparativa de duas obras com semioses diferenciadas. Em outras palavras, a proposta aqui é verificar como um cineasta apropria-se de uma obra literária consagrada para realização de uma obra fílmica, tendo que lidar, ainda que inconscientemente com uma torturante Angústia da Influência.

 

 

c.                 Clinamen ou do romance ao filme

 

Thomas Mann (1875-1955) publica Morte em Veneza (MV) em 1912. Trata-se de um livro, se comparada às suas volumosas obras Montanha mágica (1924) e Doutor Fausto (1947), de fôlego menor. Em torno de um pouco mais de oitenta páginas, se desenrola a narrativa do renomado literato alemão Gustav von Aschembach que, em crise com a austera vida que levava em Munique, resolve passar uma temporada de descanso em Veneza. Nesta idílica cidade, no hotel em que se hospedara, vem a conhecer à distância, um jovem que, para ele, representa a própria encarnação da beleza e da inocência:

 

(...) Aschembach notou que o menino era perfeitamente belo. Seu rosto pálido e graciosamente fechado, circundado por cabelos cacheados, louros cor de mel, com o nariz reto, a boca suave, a expressão de seriedade divina, lembrava esculturas gregas dos mais nobres tempos e da mais pura perfeição de forma; era de tão rara atração pessoal que o observador julgou nunca ter encontrado na natureza ou no mundo artístico obra tão bem sucedida (MV, p. 51)

 

O jovem em questão era um rapaz de, aproximadamente, catorze anos, filho de poloneses, chamado Tadzio. Todas essas informações é-nos revelada pelo narrador, através das especulações, intuições e observações do próprio Aschembach, já que o protagonista nunca irá aproximar-se de seu objeto de admiração e desejo, a não ser por um voyeurismo intenso e desmedido.

Aschembach possuía uma dedicação metódica e irrefreada ao seu trabalho como escritor, não conseguia controlar o "(...) movimento do mecanismo no seu interior, aquele 'motus animi continuus', no qual, de acordo com Cícero, consiste a natureza da eloqüência (...)" (MV, p. 19). Dessa forma, aferrado pela racionalidade e pela produtividade artística, ele não se permitia deleitar-se com distrações mundanas, tampouco afastar-se muito das proximidades de onde emanava sua criatividade e onde se realizava o seu trabalho literário:

 

Demasiadamente ocupado com as tarefas que lhe impunham seu Eu e a alma européia; demasiadamente sobrecarregado pelo dever de produção; adverso demais a distrações para servir como amante do colorido do mundo exterior, se dera por satisfeito com a opinião que todos, sem se afastarem do seu círculo, podem obter da superfície do mundo (...).  (...) concentrara sua vida exterior quase exclusivamente à bela cidade que se tornara um lar para ele (...) (MV, p. 23-24).

 

Caminhando para a idade sexagenária, Aschembach também se preocupava com a completude de sua obra, antes que a espada de Cronos desse cabo dessa possibilidade. Para tanto, seguia à risca o lema trabalho, trabalho, trabalho:

 

"Sobretudo desde que sua vida se inclinava devagar; desde seu medo artístico de não conseguir terminar — esta preocupação do relógio parar antes de ter feito a sua parte e se ter dado por completo (...)" (MV, p. 24).

 

Porém, como a vontade humana está subordinada, necessariamente, à capacidade física e psicológica de realizá-la, Aschembach já sentia que esse poder anímico de consumação de sua obra começava a faltar-lhe. Aquele ímpeto que em sua juventude estabelecera a dinâmica de sua criatividade e produtividade, na idade madura em que ele se encontra, já dá ares de exaustão e de enfado:

 

Pensou no trabalho, pensou no trecho no qual, hoje novamente como ontem, tivera que abandoná-la e que parecia não querer submeter-se nem a pacientes cuidados, nem a um rápido golpe de mão. Ele o examinou de novo, tentou quebrar ou solver a inibição e desistiu do ataque com um arrepio de repugnância. Aqui não se apresentava uma dificuldade extraordinária, mas aquilo que o paralisava eram os escrúpulos da má vontade que se manifestava por uma insaciabilidade. Aliás, já tinha valido ao jovem como essência e íntima natureza do talento, e por ela tinha dominado e esfriado o sentimento, porque sabia que era inclinado a satisfazer-se com um alegre mais ou menos e uma perfeição. Agora este sentimento escravizado vingava-se, abandonando-o, recusando-se a continuar a carregar a alar sua arte, levando consigo toda vontade, todo entusiasmo na forma e na expressão? (MV, p. 25).

 

É preciso somar-se a isso, a frágil saúde de Aschembach. Desde criança, uma farta lista de cuidados, recomendações e preceitos médicos o acompanharam ao longo da vida. Em seu ocaso existencial, essa fragilidade irá pesar demasiado sobre seus ombros, fazendo com que a sua dedicação férrea ao trabalho seja refreada contra a sua vontade:

 

"(...) cedo tivera de compreender, que pertencia a uma geração na qual não o talento mas sim a base física era uma raridade — uma geração que cedo dava o que tinha de melhor e no qual o saber raras vezes atingia a idade" (MV, p. 28).

 

Aschembach buscava compensar sua débil saúde com um apego desmedido a uma rigorosa disciplina metodológica de escrita diária, seguindo uma teoria criada por ele mesmo, segundo a qual, por trás de uma obra grandiosa há sempre um "apesar" obstaculizador:

 

"(...) quase tudo que existia, existia como um 'apesar', realizado apesar da aflição e tormento, pobreza, abandono, fraqueza corporal, vício, paixão e mil obstáculos, era uma experiência, era, por assim dizer, o preceito de sua vida e sucesso, a chave para a sua obra (...)" (MV, p. 30).

 

No entanto, nem mesmo essa teoria do "apesar" estava assegurando a Aschembach a condução de seu trabalho a um bom termo. Sentia que sua fonte de energia criadora se esgotava e, mais ainda, que sua capacidade produtiva se via presa aos achaques e às mazelas da velhice que se aproximava devagar, porém, inexoravelmente. Era necessário buscar outros ares, outras paisagens, outras sensações e percepções para re-animar a sua vitalidade humana e artística:

 

"Era ímpeto de fugir, o que confessou a si mesmo, esta saudade para a distância, para a novidade, esta ânsia por libertação, exoneração e esquecimento — a pressão de se afastar da obra, do sítio cotidiano de um serviço rígido, frio e apaixonado" (MV, p. 24).

 

Desde a decisão de ir para Veneza até o encontro inesperado com a beleza apolínea de Tadzio, passando pelo sentimento ambivalente de amá-lo apenas contemplando-o como a uma obra de arte ou consumar esse amor através de uma realização carnal, eis o dilema por que passará Aschembach, e que será também a ambivalência por que passará a cidade de Veneza, já que resguardará em si mesma a beleza onde se encontra "(...) o incomparável, o quimérico diferente (...)" (MV, p. 36-37) e, ao mesmo tempo, o fedor, a imundície e a doença.

Segundo Randal Johnson, em seu livro Literatura e cinema — Macunaíma: do modernismo na literatura ao cinema novo,

 

Quando um cineasta decide traduzir um texto literário, popular ou não, o filme tem como origem um modelo já estabelecido, e inevitavelmente (...) precisa desviar do modelo enquanto permanece dentro de seu espaço semântico geral. Podemos dizer (...) que a segunda obra, a tradução, ganha significância autônoma precisamente através de suas inevitáveis e necessárias divergências da obra original (1982, p. 10) (grifo nosso).

 

Nesse sentido, podemos afirmar que quando Luchino Visconti (1906-1976) lança o filme Morte em Veneza (MV), em 1971, realiza, necessariamente, um clinamen em relação à obra homônima de Thomas Mann.

Bloom (1991) toma emprestado esse termo ao filósofo latino Lucrécio (98/94-55 a.C.) que assim o explicita:

 

Quando caem os átomos em linha reta através do vazio, desviam-se minimamente de sua trajetória, numa altura e num momento incerto, e tão-somente o necessário para que se perceba uma alteração no movimento. Não fosse esse desvio e tudo cairia em linha reta sempre, como gotas de chuva pelo abismo do espaço. Não haveria, entre os átomos, nem colisão nem choque. Se assim fosse, a natureza jamais teria criado alguma coisa (apud Bloom, 1991, p. 78) (grifo nosso).

 

Visconti, ao realizar a recriação fílmica Morte em Veneza a partir da obra literária de Mann, desvia-se da mesma, em primeiro lugar, pela própria mudança de linguagem, ao passar de uma semiose lingüística para uma semiose visual. Em segundo lugar, desvia-se da obra original porque o processo de recriação é em si mesmo um ato de leitura crítica, já que quem recria irá, necessariamente, privilegiar alguns aspectos, omitir outros, dar relevo a alguma personagem e/ou ação em detrimento de outras.

Visconti, por exemplo, desconsidera as primeiras dezesseis páginas da obra de Mann, em que importantes questões, dilemas e decisões atormentam o protagonista Aschembach: as presenças prolépticas do "cemitério" e da figura do "estrangeiro"; o desejo de viajar; a descrição de seu íntimo; a apresentação de sua obra; a sua biografia; a sua fama; o seu método e sua disciplina de trabalho; a sua indecisão de para onde viajar e o porquê de sua escolha por Veneza.

Há um desvio também, por parte de Visconti, de apresentar Aschembach não como escritor, mas como músico. Essa opção talvez se deva ao fato de Visconti desejar distanciar-se da presença ostensiva do escritor Mann, dando ao seu personagem, outra formação artística. Mas também talvez seja um tributo que o cineasta tenha desejado prestar ao seu amor pela música, já que, em sua juventude interessara-se profundamente por essa linguagem artística, tendo sido, inclusive, grande amigo do maestro Arturo Toscanini (1867-1957) e do compositor Giacomo Puccini (1858-1924). Outra possibilidade é a de Visconti ter feito uma referência à outra obra de Mann, Doutor Fausto (1947), cujo protagonista, Adrian Leverkhün, é um grande pianista.

De todo modo, o desvio realizado pelo diretor de Morte em Veneza se dá nos interstícios, limites e possibilidades estabelecidos pela obra original ou, como afirma Johnson: "A autonomia total é com certeza impossível; o texto literário funciona inevitavelmente como uma 'forma-prisão'" (1982, p. 10).

 

 

d.                 Tessera ou a obra original complementada

 

Para Bloom (1991), a tessera ocorre quando o artista mais jovem, buscando atender aos anseios de sua imaginação criadora, acrescenta complementos à obra de seu precursor no sentido de torná-la completa, superando um certo bloqueio do qual o autor original não conseguiu se desvencilhar. A palavra tessera Bloom toma de empréstimo a Jacques Lacan (1901-1981), cuja apropriação que ele faz dos fundamentos psicanalíticos de Freud, pode ser considerada como um exemplo dessa complementação.

Há um caráter inelutável de tessera na recriação fílmica que Visconti faz da obra de Mann. A própria utilização de outra semiose, a visual, para traduzir a linguagem literária, já é, por si só, uma complementação daquilo que a literatura só pode alcançar em termos imaginativos na apreciação do leitor. O fato de o diretor do filme possibilitar a personificação da imagem de Aschembach, através da belíssima atuação de Dirk Bogarde; de apresentar uma figuração, que só faz justiça à descrição feita pelo narrador de Morte em Veneza, da beleza olímpica de Tadzio, consubstanciada na performance do jovem ator e modelo Björn Andressen e, confirmar a beleza de Veneza descrita por Mann, agora podendo ser apreciada em todos os seus tons de azul na belíssima fotografia de Pasquale de Santis, nos dão a certeza de que, em alguns raríssimos casos, a tessera se confirma como uma autêntica complementação da obra original. Porém, percebemos com maior clareza e profundidade a complementação que Visconti realiza na obra original de Mann — e que este jamais poderia alcançar em seu labor literário, posto que é um obstáculo intransponível para qualquer escritor — é na escolha da trilha sonora do filme. Desde a cena da chegada de Aschembach a Veneza, a bordo de um barco a vapor, até a cena de sua morte na praia do Lido, os sons elegíacos do Adagietto, de Gustav Mahler (1860-1911) dão o tom proléptico, ou seja, anunciam os vários sentidos da morte habitando em Veneza. Segundo Nestrovski, "Mais do que a câmara, mais do que a imagem, é a música aqui o princípio de organização, o verdadeiro narrador do filme" (1994, p. 90).

Ainda que a tessera se estabeleça como um complemento, quem a realiza não deseja ofuscar a obra do autor original, na realidade, quer mais é realçá-la, dando-lhe uma tonalidade e uma ambiência mais abrangentes. É o que podemos concluir da recriação que Visconti faz da Morte em Veneza de Mann, quando supervaloriza o papel da música no filme. Sabedor de que Mann era um grande leitor de Friedrich Nietszche (1844-1900), pelo que este filósofo valorizava na música e sabedor também que Morte em Veneza foi escrita, ainda sob a perplexidade da morte de Mahler, Visconti tinha nas mãos todas as razões para, ao mesmo tempo, homenagear o escritor alemão e complementar a sua obra com aquele elemento essencial, que segundo o julgamento do cineasta, ficou faltando na saga de Aschembach: a música.

 

 

e.                 Kenosis ou esvaziamento do protagonista

 

A kenosis, para Bloom (1991), é uma leitura crítica que um artista posterior realiza na obra do artista precursor, no sentido de esvaziá-la de certos elementos que singularizam a obra original, para, com esse procedimento, estabelecer uma descontinuidade, criando, assim, uma obra em que os valores do artista atual são os que devem prevalecer. Nas palavras de Bloom, "A 'anulação' da força do precursor no próprio efebo serve, também, para 'isolar' sua identidade com relação à postura do precursor e o salva, portanto, de uma transformação em tabu para si mesmo" (1991, p. 125).

Em vários momentos, Visconti realiza a kenosis na obra de Mann. Nas já anteriormente citadas dezesseis páginas que o cineasta desconsidera da obra literária, estão presentes elementos metafísicos caros à Mann e que são essenciais para a ironia que o escritor constrói em toda a trama de sua diegese. Poderíamos dizer que esses elementos metafísicos aparecem na narrativa, através de prenúncios, anunciações ou premonições, ou em sentido literário, através de várias prolepses que são sumariamente descartadas pelo cineasta. Por exemplo, Aschembach, logo no início da narrativa, ao realizar um passeio após o almoço chega, desavisadamente, a um cemitério: "(...) tomara o caminho de volta pelo lado de fora do parque, sobre o prado aberto e em frente ao cemitério do norte, esperou, porque se sentia cansado (...)" (MV, p. 20). Uma vez estando lá, Aschembach passa a notar os detalhes que o rodeiam e que lhe evocam imagens fúnebres:

 

(...) atrás das grades da marmoraria onde, expostos à venda, cruzes, placas comemorativas e monumentos formavam um segundo desabitado campo santo, nada se movia e o prédio bizantino da capela, que ficava do outro lado, se encontrava silencioso no reflexo do dia que findava. Sua fachada, enfeitada com cruzes gregas e descrições religiosas em cores claras, apresentava, além disso, inscrições em letras douradas e em ordem simétrica, legendas escolhidas e referentes à vida no além, como por exemplo: "A luz eterna os alumie"; e esperando, encontrara, durante alguns minutos, uma distração séria, lendo as fórmulas e deixando seu espírito perder-se na transparência mística (...) (MV,  p. 20).

 

Ainda no cemitério, Aschembach é surpreendido por uma aparição que o deixa perturbado e perplexo pela sensação de estranheza e mistério que a cena lhe causa:

 

(...) no pórtico, acima dos dois animais apocalípticos que vigiam a escadaria, notou um homem, cuja aparência nada comum, deu uma direção completamente diversa aos seus pensamentos. (...) De estatura mediana, magro, imberbe e nariz extraordinariamente arrebitado, o homem pertencia ao tipo ruivo e possuía a pele leitosa e sardenta peculiar a este. Evidentemente não era bávaro: como indicava, no mínimo, o chapéu de palha com aba larga e reta, que cobria sua cabeça, dando-lhe um aspecto e caráter de estrangeiro vindo de longe. (...) trazia a mochila (...) afivelada aos ombros, um terno cintado de pano não pisoado, de cor amarelada, parecendo trazer uma capa de chuva sobre o antebraço esquerdo, que encostava na cintura; de pés cruzados, firmava à direita e obliquamente contra o chão uma bengala com ponta de ferro, cujo castão apoiava na cintura. Com a cabeça erguida, de modo que, crescendo da camisa esporte solta, aparecia seu pescoço magro, sobressaindo, forte e nu, o pomo-de-adão; olhando agudamente para a distância com olhos incolores e de pestanas vermelhas, entre as quais estranhamente combinando com seu nariz curto e levantado, haviam duas rugas horizontais. Assim — e talvez sua posição elevada e elevante, contribuísse para esta impressão — sua pose tinha algo de alcance dominante, corajoso ou mesmo selvagem pois fosse porque ofuscado, fazia caretas contra o sol poente, ou se tratasse de uma deformidade física constante: seus lábios pareciam curtos demais, eram completamente recuados dos dentes de modo que estes ficavam expostos, brancos e compridos, até a gengiva (MV, p. 21-2).

 

Por que razão Mann dedicaria uma descrição tão longa e tão detalhada para uma personagem tão secundária e que só aparece ostensivamente nesse momento da narrativa? Julgamos porque, talvez, essa personagem não seja tão secundária assim. Talvez possamos vislumbrar nessa figura tão enigmática, uma transfiguração de Hermes, o deus-mensageiro-alado, trazendo uma notícia a Aschembach, que ele precisará decifrar durante o crepúsculo de sua existência. A confirmação do estranhamento e da perturbação causada pelo estrangeiro e da mensagem que ele trazia ao protagonista de Morte em Veneza, é-lhe revelada, não a partir de uma linguagem límpida e lógica, mas por uma intuição desassossegada e anímica: Aschembach sentiu um súbito desejo de viajar. Mas o que ele não dá conta de perceber, naquele momento, é que essa viagem não se consumaria no gesto humano de ir à Veneza, mas, uma vez estando lá, na outra viagem que ele teria que fazer, sendo esta obrigatória, sem volta e definitiva:

 

         Fosse que o aspecto de viajante do estranho tivera um efeito sobre sua imaginação ou outra qualquer influência física ou moral: surpreendido, ficou cônscio de uma estranha expansão de seu íntimo, uma espécie de desassossego, um desejo juvenil e sedente para a distância, um sentimento tão vivo, tão novo ou há tanto tempo desacostumado e desaprendido, que ele, com as mãos nas costas e olhar para o chão, parou cativado, para examinar a natureza e o objetivo da emoção.

         Era o desejo de viajar, nada mais; mas verdadeiramente parecendo um acesso e intensificado até a paixão, sim, até a alucinação (MV, p. 22).

 

Na seqüência desse acontecimento, Visconti também desconsidera o aspecto de premonição presente na imaginação criada por Aschembach quanto ao lugar que deveria viajar para descansar. É justamente numa experiência de sonhar acordado que ele terá a visão topológica de seu destino de viagem:

 

(...) ele via, via uma paisagem, uma região tropical pantanosa sob um céu pesado, úmido, exuberante e descomunal, uma espécie de selva antediluviana, composta de ilhas, pântanos e braços fluviais lamacentos; — via, de viçosos fetos, dos solos florido de plantas fartas, inchadas e excêntricas, elevarem-se, aqui e acolá, hastes cabeludas de palmeiras; via esquisitas e informes árvores mergulharem suas raízes, da terra pelo ar, em águas paradas, espelhando sombras verdes, onde, entre flores flutuantes que eram branco-leitosas e grandes como bacias, pássaros de estranha espécie, de ombros altos e bicos disformes, estavam parados nas águas menos profundas e olhavam, imóveis, para o lado; via, entre os nós da varas do bambuzal, brilharem as luzes de um tigre na espreita — e sentiu seu coração bater de terror e desejo enigmático (MV, p. 22-3).

 

Visconti irá também desconsiderar um importante aspecto da obra de Mann: o valor que este dá ao inconsciente do personagem Aschembach, quanto ao dilema que ele sofre entre amar Tadzio à distância ou consumar esse amor na carnalidade sexual. A certa altura da diegese, quando Aschembach está completamente apaixonado por Tadzio, o seu inconsciente não perdoa seu auto-controle e sua auto-contenção e revela o que seu instinto reclama, através de um sonho que muito se assemelha a um sabá de feiticeiras:

 

O medo, foi o princípio, medo, desejo e uma curiosidade horrorizada pelo que devia vir. Imperava a noite e os seus sentidos escutavam; pois de longe se aproximavam tumulto e bulha, uma mistura de barulhos: um sacudir de correntes, retumbar, abafados trovões acompanhados de júbilos estridentes e de um certo uivar com o som prolongado de "u" — tudo isto impregnado por um toque de flauta soando mais alto e medonhamente doce, profundamente arrulhante, perversamente pertinaz que, de maneira importunamente vergonhosa, lhe enfeitiçava as entranhas. Ele sabia uma palavra obscura, mas dando um nome ao que vinha: O deus estranho. Acendeu-se uma chama cheia de fumaça: então reconheceu terra montanhosa, parecida àquela em redor de sua residência de verão. E numa luz rompida, vindo de alturas revestidas de florestas, entre troncos de árvores e rochas cobertas de musgo, rolavam e precipitavam-se, girando para baixo: homens, animais, um enxame, um bando furioso — e inundaram a colina de corpos, chamas, tumulto e dança vertiginosa. Mulheres gemendo, sacudiam os tamborins sobre suas cabeças jogadas para trás, tropeçando sobre longos hábitos de pele que lhes pendiam da cintura; vibravam punhais nus e archotes cujas chamas se dispersavam; seguravam serpentes sibilantes pelo meio dos corpos ou erguiam, gritando, seus seios com ambas as mãos. Homens de chifre sobre as testas abrigados em peles, hirsutos, curvavam o pescoço e erguiam os braços e coxas, faziam vibrar pratos de bronze e batiam raivosos sobre timbales, enquanto que, com bastões envolvidos em folhas, rapazes nus espicaçavam bodes cujos chifres agarravam, deixando-se arrastar, jubilantes, pelos seus saltos. E os extasiados urravam o grito de consoantes suaves de prolongado "u" no fim, doce e selvagem ao mesmo tempo, como jamais fora ouvido um outro: — aqui ressoava bramando para os ares como por veados e ali era reproduzido, multíssono em louco triunfo, atiçavam-se com este grito para a dança e, arremessando os membros, nunca o deixavam silenciar. Mas tudo era penetrado e dominado pelo profundo e atraente som de flauta. Não seduzia também a ele, o presenciador resistente, com persistência impudica para a festa e a imoderação do sacrifício extremo? Grande era a sua repugnância, grande seu medo, honesto seu desejo de salvaguardar o seu eu até o fim contra o estranho, o inimigo do sereno e digno espírito. Mas o barulho e a gritaria, multiplicados pela rocha ecoante, cresciam, sobrepujavam, aumentavam até à loucura arrebatante. Vapores comprimiam o cérebro, o cheiro penetrante dos bodes, atmosfera de corpos arquejantes e um sopro de águas pútridas, e além destes ainda um outro, familiar: de feridas e doença propagada. Com as batidas dos timbales seu coração retumbava, seu cérebro girava, acometido de raiva, de desvario, de atordoante voluptuosidade, e sua alma desejou unir-se à dança de roda do deus. O enorme símbolo obsceno, de madeira, foi descoberto e elevado: aí gritaram mais desenfreados a senha. Com espuma nos lábios vociferavam, excitavam-se com gestos lascivos e mãos buliçosas, rindo e gemendo, empurravam os bastões espinhosos um na carne do outro e lambiam o sangue dos membros. Mas com eles, entre eles, estava agora o sonhador, submisso ao deus estranho. Eles eram ele mesmo, quando se atiravam sobre os animais, dilacerando e assassinando, e devoravam pedaços fumegantes; então, sobre o terreno de musgo revolvido, começou um ilimitado cruzamento, em sacrifício ao deus. E sua alma experimentou a luxúria e a loucura da decadência (MV, p. 115-7).  

 

Visconti realiza, em sua recriação fílmica, uma kenosis metafísica quase que absoluta. Poderíamos dizer que o espírito de imanência do cineasta italiano sufoca o que há de transcendência romântica na obra do escritor alemão. No caso da desconsideração do elemento onírico, como anunciador críptico do drama que se desenrolava no inconsciente de Aschembach, julgamos que seja o resultado da opção de Visconti por uma narrativa fílmica que aposta na leitura que os apreciadores fariam das imagens das atitudes do protagonista e que revelariam, por si só, sua angústia, seus temores, sua dor, sua perplexidade, como resultantes de seu conflito psicológico.