Eles já não tinham as mesmas esperanças. O sol estava causticante. Velhas gaivotas entorpecidas voavam por cima dos destroços do barco. Estariam próximo da praia? Isso era algo que não daria para deduzir naquela situação. O suor era rio de lavas escorrendo pelas costas. Sal, sol e sangue. Mãos enrugadas pela água tentam se segurar inutilmente no casco enlodado. Pode-se ouvir o arranhar de unhas tentado um apoio na desgastada estrutura metálica. A noite anterior havia sido de festa. As emoções explodiam junto com os champanhes, músicas, danças e prazeres.

Na boca da noite o barco havia saído com um grupo de recém graduados para a aula da saudade em pleno mar. Haviam passado cinco anos juntos na universidade numa vida de bicho, entre provas e trabalhos exaustivos, muitos não haviam conseguido terminar no mesmo tempo. E agora aproveitariam aquela noite como se fosse a última. Pois depois daquele encontro muitos jamais se veriam outra vez, se desencontrariam nos labirintos dos sonhos e das ilusões... Eles pareciam tão iguais.  

Alguns pais foram deixar os filhos no porto e se despediam entre beijos e abraços protetores. Nesse momento podiam-se ouvir aquelas frases protocoladas de pais preocupados: "Tomem cuidado!", "Não se afastem muito da costa!", "Minha filha, você está levando seu remédio pra enjôo?", "Nada de exageros!", "O barco tem botes salva-vidas?", dentre outras que se passaram despercebidas diante dos fortes açoites do vento no tímido porto da vila de pescadores. Entre os jovens sorrisos ansiosos pela aventura. A menina de cabelos caracolados despede-se de seu poodle com um abraço mole e entra no barco, fileiras cristalinas de água saem de seus olhos. O cachorro tem um grunhido de alma faminta.   

A viagem teria a duração de vinte e quatro horas. Pablo tinha pensado em cada detalhe, já que esses eram inúmeros. Um bom barco, um comandante responsável, bebidas, mulheres, e um grupo de música latina, la noche seria caliente.  

Conseguiram um barco de um cinza-turvo com capacidade para quarenta pessoas. Eram conduzidos por um comandante que não bebia, isso era raro, mas conseguiram. Bebidas baratas e de boa qualidade também não foi problema, pois o pai do Kaio era dono de uma distribuidora de bebidas. Além das belas garotas da turma, também estavam ali umas convidadas especiais.

Liga-se o motor. A maquina emite um barulho arrastado que pode ser ouvido ao longe. O sol já se escondeu e a lua já despontava no Oriente com cara de quem sofrera fortes dores nos molares. Aos poucos o porto vai sumindo... Uma das mães sente mãos gélidas apertando seu coração. Enquanto os outros pais se dirigem aos carros, ela fica ali com um sorriso triste de quem espera, vendo o barulhento vulto sumir no horizonte.

A embarcação segue mar adentro quebrando as frágeis ondas encontradas pelo caminho. Já era noite alta. Uma névoa silenciosa sobe à bordo, aos poucos ela vai invadindo os espaços do velho barco. Enquanto isso, muitos se divertem. Som muito alto. Na mesa próxima da cabine estava o grupo dos mais comedidos. Eles sempre estavam juntos, permaneciam ali como se cumprissem uma formalidade. Debulhavam deboches. Alguém destaca que o barco está com capacidade além da permitida. Esse tipo de observação já não importava naquela altura.

As bebidas já faziam efeito. As músicas têm uma pausa, um dos estudantes sugere um brinde. Todos param o que estão fazendo e Marcelo, o mais comunicativo do grupo, tenta um discurso que emperra diante de emoções confusas. Um nó se forma em sua garganta. Gabriela toma a palavra e fala:

- Essa noite foi muito esperada por todos nós. Passamos momentos ruins nesses cinco anos, momentos alegres. O tempo passou ligeiro feito beijo roubado. Os obstáculos foram superados e conseguimos vencer mais uma difícil etapa de nossas vidas, concluir o curso. Muitos quiseram desistir, porém persistiram e aqui estão. Outros, infelizmente, não conseguiram. Não sabemos o que o destino nos reserva, mas tenhamos consciência que seremos muito felizes. Estou feliz... desculpem... tô um pouco emocionada. 

- Muito bem Gabi! Não é pessoal?! Gritou Kaio.

- É isso aí, Gabi! Todos gritaram.

- Vamos brindar?! Sugere Marcelo. E levanta a palavra de ordem:

- Sonhos, saúde e paz!

Todos repetem uníssonos:

- Sonhos, saúde e paz!

Após o brinde, o grupo se dispersa novamente. Velhas histórias do curso agora vinham à tona nas diversas rodinhas que se formam. Cenas engraçadas são relembradas. Namoros bem sucedidos. Paixões. Vitórias. Desencontros. Brigas. Histórias envolvendo os professores. Verdades inconvenientes.

Um vento forte começa a empurrar as ondas contra a embarcação. A névoa se recolhe. Os cabelos das jovens são sacudidos e remexidos pela ventania. Desequilíbrio. Toda aquela estrutura começa a dançar ao som de uma partitura lenta e suave que aos poucos vai aumentando seu ritmo... Torna-se caos.    

Gritos. Corre-corre. Inúteis pedidos de socorro pelo rádio. As ondas agora lambem feito animal faminto todo convés. As luzes começam a oscilar. Apagam e acendem, por fim dormem. A lua se oculta nas densas trevas das nuvens. O mar é um breu. Agora não enxergariam nem uma porta luminosa diante do nariz. Todos os mundos existentes em cada uma daquelas vidas se unem na luta contra o desespero. Onde estariam os botes? Será que o barco teria coletes?

- Deixem de exageros!É só um pequeno redemoinho. 

- Eu tô enjoado! Grita um dos rapazes.  

- O barco vai afundar! Ouvem um alerta desesperado.

Uma onda gigante em formato de concha forma-se na lateral esquerda do barco. O vento cessa. Há um pequeno repouso. Uma grande parede de água se ergue dominadora e despenca sobre o barco afogando muitos sonhos que brotavam. O silêncio dos mortos caminha lentamente por cima das espumas... Ele não tem cuidado por onde anda e caminha por cima dos sonhos alheios.

O sol estava causticante. Eles já não tinham as mesmas esperanças. Velhas gaivotas... Estariam próximo da praia?

Escutam atordoados a aproximação de um barco. Era a guarda costeira. No outro dia os jornais noticiariam: "Naufrágio ceifa a vida de dez jovens durante aula da saudade". O periódico ainda divulgaria trechos de entrevistas com muitos dos sobreviventes e a fala de uma jovem que perdeu o horário da viagem e atribuía ao destino a razão de estar viva. O acidente fora provocado por um redemoinho. Eles pareciam tão iguais.

 

 

 

(imagens ©michalrebilas)

 

 

  

 

Nonato Furtado tem formação em Pedagogia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú-UVA e Letras pela Universidade Federal do Ceará-UFC. Atua como professor de Literatura e Espanhol em projetos de Extensão da UFC e em escolas particulares de Fortaleza. Escreve contos, crônicas, e envereda pela poesia.