A poesia tem a vantagem de ensejar várias leituras, o que enriquece muito sua recepção. E, às vezes, a poesia é uma espécie rara de sortilegium, um tipo de leitura com interpretação de padrões postos ao acaso sobre uma superfície, no caso, a linguagem.

           Em decorrência dessa acasionalidade advêm a inventiva, o imaginário, o garimpo, o jogo de palavras e o fascínio heurístico pela descoberta de novas performances dos signos.

           Essa atitude justifica a dicção própria de um poeta e o distingue com diferencial em meio à robustez de publicações. O reconhecimento desse posicionamento intencional torna viável o amadurecimento poético e esse, por conseguinte, estabelece um fluxo produtivo seqüencial que torna então o poeta uma referência.

           A trajetória implicada nesse processo não depende — nem pode, felizmente — de acasos mallarmaicos, de sorte grande junto à sazonalidade idiossincrática de uma dada crítica de favor amical, às vezes de uma erudição hermética da academídia, das jusantes do decorum, ou de um leitorado blogueiro propenso a loas fáceis para ocupação do ócio mental-eletrônico.

           Convenhamos: internet e imprensa impressa estão saturados desse bazar literário.

           O livro Sortilégio, de Edson Cruz, insere-se entre exceções livrescas da ilusão lingüística de ser o legado da sorte resultado de um mero código de direção. O livro se faz. É construído sem o que representa ou imita, donde garantir estranhamento, portanto o prazer inusitado com poemas minimalistas em sua quase totalidade, acrescidos de uns poucos laivos de boa retórica.

           O poeta mergulha em busca de hyponoia e sambaquis para revitalizar, ironizar, desconstruir ou inaugurar significâncias, como em "Feitiço" ("algo assim não – mais factício – por demais tal coisa feita – que de tão artifício – vira arte – vira livro – vira ofício", 22); "Ouriço", com um posicionamento iconoclasta ("chega deste papo besunto – arranjo de flores tardias – aulas, estórias – assuntos", 28); "Nanquim" ("palavra que não lavra – universos numerados até o fim...", 30); "Flor-de-lótus", questionativo, zen, místico ("o que escrever com o sangue que goteja?", 36); "Sambaqui" ("o que fazer então – com as palavras? – depositá-las aqui – vomitá-las – como se vomita – uma língua", 42), entre outros tantos bons exemplos.

           Em nível temático, Sortilégio não tem um ponto de ancoragem definido e o poeta previne: "tal estrada abriga horrores em seu leito — terríveis desertos, terra inóspita e dardejante" ("Cidade imaginária", 46), ele que foi — até por opção — "abandonado de deuses e de afeto" ("Sinal verde", 40), em "ofício tão errático" ("Cidade imaginária", 46), do qual se arroga não ter (uma vez ser estreante) "nenhum ontem em círculo vazio – e um amanhã que traga algum esteio" ("Tartaruga de um só olho", 56).

           O poeta sabe porque conhece que nesse sortilégio, ou na leitura da sorte, predomina, maniqueistamente, um "Círculo eterno" no qual os homens, e por certo os poetas, andam "de caverna em caverna" (66) em busca do que, poética e existencialmente, os redimam da aporia. Por isso o ato de confissão em "Devir": "meu ser derradeiro – ainda está no prelo" (78).

           Título da primeira parte do livro, Sambaquis é nome emblemático para Edson Cruz, que o tem, também, em seu blogue (clique aqui): há nesse recorte coerência poética em relação àquilo que constitui o alicerce básico da cultura sincrônica e diacronicamente estabelecida na evolução humana, donde a importância preservacionista, lingüística e referencial, que resiste à desmemorização contemporânea. Há então um "mar morto" e "um deus absorto" (14); o "palimpsesto" (16); "anuros" (18); um "rascunho [de ave] que não pousa nunca" (20); "gonfotérios na Paulista" (24) — alusão perfeita a uma situação caótico-urbana de uma São Paulo fóssil pós-moderno; "nanquim" (30); "lágrimas oceânicas" (32) — onde o poeta questiona quanto da riqueza de Portugal "é o sumo de nossas tristezas", enumerando possessões ultramarinas, colônias, com a convicção histórica de a terra de Camões, Pessoa e Saramago (p.ex.) ser o "sal que corrói a pele de nossas almas", além do poema "Sambaqui", quando então remete ao samba onde "cabem todos os restos", de que se constrói "uma poética do débris", sabiamente lembrado por Ítalo Moriconi no prefácio. "Raspas e restos me interessam", antecipou Cazuza. "Restos que não evaporam" (26), cinge Edson Cruz em "Linguagem".

           Artesão da tessitura de verbos & substantivos, Edson Cruz vem no tempo para o espaço, de dentro para fora, maiêutico e conclusivo, compondo uma linguagem que é antes de tudo nobre para uma poesia sensível sem o desgaste que a entoja numa lírica tautológica e chata.

           Um poema muito especial de Sortilégio é "Linguagem" (26). Nele, linguagem é outeiro, depósito, plástico, coisa, palavras, forno, fábrica = significância em trânsito, ou, com Barthes, "uma rede organizada de obsessões". O poema é o que está prestes a ser linguagem; linguagem é o que está prestes a ser poema: "lâmina branca de sentidos" (26). É um "querer-dizer anterior" (Compagnon): "essências exteriorizadas". O que se identifica pela cristalização de sentido: "outeiro criado de acúmulos – tegumentos enrijecidos". É o "pensamento indeterminado" (Poulet): "palavras não específicas".

           Ao escrever que linguagem é "fábrica de desmundos – mijos de civilizações – tudo que o tempo não – esquece nem se envaidece", o poeta tem consciência de que, barthesianamente "a linguagem é problema", e de ser preciso, portanto, que se experimente "sua profundidade, não a instrumentalidade ou a beleza". A linguagem é, cf. Barthes, "a obra que se oferece à exploração". A linguagem garante à poesia a condição de oposição de mercadoria: "coisas não transformadas em objetos de adorno". A leitura desse poema é enriquecida com o discernimento lúdico implicado no uso do verbo "calcinar".

 

 

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O livro: Edson Cruz. Sortilégio. São Paulo: Demônio Negro, 2007

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março, 2008

 

 

 

 

 

Márcio Almeida. Mestre em Literatura, jornalista, poeta, criador do Movimento de Resgate do Autor Inédito e Anônimo de Oliveira. Autor de 39 publicações, detentor de dezenas de prêmios literários, membro efetivo da Comissão Mineira de Folclore.

 

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