A Editora da Unicamp acaba de lançar um livro belo & fundamental para quaisquer curiosos de uma porção de departamentos diferentes: quem se interesse por literatura, arte, retórica, arquitetura, história da cultura, e suponho que até neurologistas e psiquiatras poderiam mesmo achar campo a explorar em A Arte da Memória, de Frances Yates (1899-1981), pesquisadora, professora e historiadora britânica do Warburg Institute, da Universidade de Londres.

O livro compendia uma história dos mecanismos para se desenvolver a chamada "memória artificial", isto é, a memória condicionada por treinamento específico, ampliando-se para o armazenamento de uma quantidade de informação portentosa, variada e rigorosamente ordenada. 

Yates traça sua perquirição desde a antológica anedota de Simônides de Kéos, aquela em que o poeta, contratado para cantar um ricaço durante um jantar, canta-o num poema que inclui os deuses gêmeos, Cástor e Póllux, e recebe do ricaço metade do pagamento, porque "se quiser, vá pedir a outra metade aos gêmeos, que não te paguei para cantar".

Desolado, Simônides recebe o aviso de que dois jovens querem vê-lo à porta; chegando lá, não há ninguém. Mas bastou isso para que o teto de mármore caísse sobre ricaço & convivas, matando todos, menos Simônides, que fora ver quem lhe chamava. Os familiares vão reconhecer os cadáveres para enterrá-los, que estão, no entanto, desfigurados além de reconhecimento: mas Simônides, talvez por ser poeta, é dotado daquele dom de Mnemosyne e aponta cada em seu lugar. E tira daí o princípio de uma arte da memória.

Yates estabelece a ligação da anedota com os tratados romanos, sobretudo Cícero no De Oratore (onde conta-se a anedota) e o anônimo no Ad Herennium, que já estipulam a idéia de lugar associada, portanto, à memória. A memorização de lugares onde se depositam partes de um discurso a ser recordado em detalhe se baseia na construção mental de um verdadeiro palácio completo, que para isso se utiliza também da colocação de personagens e cores em lugares estratégicos, para pontuar e enfatizar partes do discurso.

A idéia, ou a palavra, recebe então uma representação mental de função mnemônica que a associa diretamente com uma coisa, ainda que convencional. O método é surpreendente, e Yates sublinha o quanto um tal artifício está distante da nossa capacidade de compreensão efetiva.

Devemos sempre lembrar que o livro não era um artigo tão comum (nem tão ordinário, por outro lado) quanto é hoje, ou quanto passou a ser desde o século XIX; além disso, é também justo recordar que a perseguição a pessoas educadas sempre foi um dos esportes preferidos do poder. Em sua maior parte, essas pessoas não podiam consultar livros, em prisões simples ou masmorras horripilantes, e deveriam contar apenas com a própria memória, às vezes para redigir defesas cujos argumentos precisavam de uma precisão capilar, também nas citações, como no caso de a Inquisição querer a sua pele (como foi o caso de António Vieira).

Penso também que uma memória ampla & bem treinada se compunha igualmente de um aspecto ético, isto é, um homem precisa ser algo mais do que o mero recurso a notas encadernadas, como um pressuposto daquilo que se considera o conhecimento, e Voltaire diria, por exemplo, que conhecimento é o que fica depois de termos esquecido tudo o que aprendemos. Não se deve desconsiderar também o poder de maravilha causado por um orador que tinha o discurso impecavelmente proferido de memória.

Por todos esses motivos, compõem-se manuais de ars memoriae durante a Idade Média e o Renascimento, até por volta do século XVIII (há ainda  registros no século XIX, mas é a constatação do declínio). Yates aborda as técnicas desses manuais, situando-os também nas práticas culturais e filosóficas de cada período, e dentro do universo mental em questão (a relação com o neoplatonismo e os livros de magia de Agrippa, por exemplo, ou as relações entre a arquitetura e a concepção de teatro em Robert Fludd).

A Arte da Memória, lançado originalmente em 1966, é um dos livros mais importantes do ensaísmo do século XX. Finalmente traduzido para o Brasil, é uma edição importantíssima, e reproduz as ilustrações coletadas por Yates dentro da longa tradição publicada das artes da memória, que ajudam a visualizar a complexidade do assunto e a variedade de alternativas de composição das referências de mnemotécnica.

 

 

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O livro: Frances Yates. A arte da memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2008.

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julho, 2008

 

 

 

 

 

Dirceu Villa, poeta, tradutor, ensaísta e professor de literatura. Publicou MCMXCVIII(São Paulo: Selo Badaró, 1998), Descort (São Paulo: Hedra, 2003) e tem inédito o novo livro de poemas, Icterofagia. Apresentou o programa da rádio CR37, da Casa das Rosas, na internet, sob direção de R. H. Jackson, e editou a revista Gargântua (1998-1999); foi publicado na antologia nova-iorquina Rattapallax 9 (2003); tem poemas publicados nas revistas Ciência & Cultura e Ácaro, na qual publicou também traduções de e.e.cummings e Ezra Pound; traduziu e anotou Lustra, de Ezra Pound, para o mestrado (2004); tem ensaio sobre Fernando Pessoa publicado no "Dossiê" da revista Cult (2005); fez o roteiro e desenhou a HQ "O Entardecer de um Fauno", baseada em poema de Stéphane Mallarmé, e recentemente prefaciou os Contos Indianos, do mesmo autor (São Paulo: Hedra, 2006), além de A Trágica História do Doutor Fausto, de Christopher Marlowe (São Paulo: Hedra, 2006). Traduziu Imagens de um mundo trêmulo, de John Milton (São Paulo: Hedra, 2006). Leciona no curso de extensão universitária da USP (Poesia - 2003/2004/2006) e faz parte do corpo editorial da revista Cadernos de Tradução, FFLCH-USP.

 

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