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Ronaldo Cagiano traz as tragédias e dramas do Brasil para a sua literatura

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Na página 92 do livro Formas Breves, Ricardo Piglia observa uma de suas teses sobre o conto: "Kafka conta com clareza e simplicidade a história secreta, e narra sigilosamente a história visível, até convertê-la em algo enigmático e obscuro. Essa inversão funda o kafkiano". Os contos da antologia Dicionário de Pequenas Solidões (Rio de Janeiro: Língua Geral Livros, 2006), de Ronaldo Cagiano, bebem de maneira fértil nessa fonte citada por Piglia e outras mais — João Antonio, Samuel Rawet na narração e Augusto dos Anjos, Drummond e Torquato Neto na poesia, pois o autor também é poeta. Vai além, reproduz e revela de maneira implacável e lúcida o resto, a sobra de um Brasil trágico e dramático, cenas que povoam uma sombra ingrata e incômoda aos olhos do Planalto Central.

 

Dicionário de Pequenas Solidões, apresentado por Ignácio de Loyola Brandão, é um labirinto descontente. Ficções profanas, extremas e brutais, castigadas pelas patologias de uma certa urbanidade, na qual transitam, lado a lado com a história oficial, personagens corroídos pelo silêncio, partidas, idas, vindas e o vazio de suas vidas ordinárias. Consumidos e cuspidos pela voraz realidade de um país que desconhece o seu povo. Desesperança pura.

 

Os contos são éditos. Sofreram modificações, como aponta a obra. São 15 histórias de dois livros: o premiado Dezembro Indigesto (2001) e Concerto para Arranha-Céus (2004), o mais pungente e maduro de Cagiano. Isso não tira o mérito, pois o conselho editorial da nova editora brasileira, com o angolano José Eduardo Agualusa e os brasileiros Luiz Ruffato e Eduardo Coelho, escolheu as histórias mais consistentes do escritor. No geral, uma série de narrativas em primeiro plano e com toda a naturalidade (verossímeis, aproximando-se da reportagem jornalística), entretanto movediças e dolorosas, fincadas numa realidade espinhosa e intercambiadas pela visível denúncia social e (con)fusão de gentes num mar de cólera e espanto em suas vias-crúcis.

 

O reino dissonante e paroxismo de um crepúsculo banhado por óbitos, tédios, descrenças, condenações, êxodos, decadências e hemorragias cerebrais crônicas. Derramadas numa lógica veloz, tumultuada e vulcânica. Inundadas por epígrafes, referências, interlocuções e pontuadas por uma imaginação criativa. Um painel digno do pintor flamengo Hieronymus Bosch.

 

Há contos exemplares: "O Abuso", "Golpe de Misericórdia", "Solidão", "Todas as Estações", "No Último Natal do Milênio", "Fígaro", "Horizonte de Espantos". O melhor deles, cuja temática é a morte, chama-se "A Marca". Uma trajetória impotente, desencantada e desesperançosa do filho que volta à cidade natal para enterrar o pai. No seu delirante retorno, o protagonista é embalado por uma sublime perturbação, um recôndito desejo, fazer o que queria quando mais novo, visitar o túmulo de Baudelaire em Paris. Mas teve que se contentar com o de Augusto dos Anjos — sepultado em Leopoldina, cidade vizinha à terra de Cagiano, Cataguases, Minas Gerais.

 

"A Marca" é um mix de encontro real e fictício para um anônimo enigmático, acinzentado, obscuro e carcomido pelos sofrimentos da procura da essência em suas crises existenciais. O remorso atinge o clímax a partir da lembrança das manchas de sangue no cimento, a nódoa que não diluiu, sinal de uma culpa irremediável: a morte do irmão menor, na infância, esmagado por um caminhão de areia.

 

Fundamentalmente poeta, contudo, regido pela máxima de Baudelaire, "Seja poeta, mesmo em prosa", o escritor desde 1979, quando chegou em Brasília (onde trabalhou como bancário. Hoje reside em São Paulo.), não parou de escrever, ofício que faz desde a adolescência. Na ficção, por mais que as temáticas dos inúmeros livros publicados sejam as frustrações e as incoerências deste tempo coroado por falsas imagens de leituras fáceis, Cagiano sempre acreditou que a "literatura é sobrevivência; pulmão e evangelho; exorcismo e apaziguamento; catarse e reflexão".

 

Impaciente, aprendeu a reinventar as coisas. A dizer não. Navega por uma trilha esclarecedora — com fluxos da memória, diálogos e consciência dos acontecimentos — que realmente faz sentido neste mar de mundo que são as contradições humanas.

 

 

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O livro: Ronaldo Cagiano. Dicionário de Pequenas Solidões. Rio de Janeiro:

Língua Geral Livros, 2006. 1ª edição, 136 págs., RS$39,00

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junho, 2008

 

 

 

 

 

José Aloise Bahia (Belo Horizonte/MG). Jornalista, pesquisador e escritor. Autor de Pavios curtos (poesia, anomelivros, 2004). Participa da antologia O achamento de Portugal (poesia, org. Wilmar Silva, anomelivros/Fundação Camões, 2005), que reuniu 40 poetas mineiros e portugueses. Autor de Em linha direta (dissertação no campo da comunicação social, no prelo, pela Quarto Setor Editorial). Também participa do livro Pequenos milagres e outras histórias (Grupo Galpão, Editoras Autêntica e PUC-Minas, 2007).
 
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