Compreender a poesia do cuiabaense, Manoel de Barros, não é simplesmente fazer uma interpretação de um texto poético, é penetrar no universo da desconstrução da ordem semântica, é se abrir para o irreal, que é real. Pois, se não existe uma interpretação unívoca no texto poético, em Manoel de Barros não se encontra nem palavras unívocas, tudo é plural, tudo é cotidiano e Surreal. O poeta Geraldo Carneiro afirma: "Viva Manoel violer d'amores violador da última flor do Laço inculta e bela. Desde Guimarães Rosa a nossa língua não se submete a tamanha instabilidade semântica".

É notório o caráter de liberdade que Manoel de Barros da a sua produção literária, sua poesia não tem estruturas fixas, suas palavras refletem idéias e imagens que ultrapassa a idéia de significante/significado Saussuriana.

Dentre várias de suas poesias a "Despalavra" nos mostra bem essa concepção de liberdade criadora proposta por Manoel de Barros, ele diz:

 

Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da despalavra.

 

É válido pontuar a idéia de tempo aparentemente sendo o presente, entretanto, "(...) o 'tempo' interno do poema foge das regras do tempo histórico, e apenas conhece o 'tempo' da emoção-sentimento-conceito que nele se corporifica". (MOISÉS, pág. 44), ou seja, a palavra "hoje" não representa a idéia de um presente que se finde nele mesmo e que se esvairia com o passar do dia. Esse "hoje" representa a continuidade. O poeta não atingiu hoje, ele tem atingido sempre, assim como, o leitor também estará sempre atingindo essas imagens-sensações (imagens essas, que não se encontra no plano visual e sim no plano da percepção) presente na poesia, cada leitura é uma leitura atual. Já o título do poema, Despalavra, está carregado de valor semântico que é marca fundamental da poesia barroniana. O prefixo des- que morfologicamente tem o sentido de oposição/negação, neste caso não tem esse sentido, aqui ele atua como meio de criação para um novo paradigma, ou seja, esse neologismo que Manoel de Barros cria (e que é um dos pontos forte de sua produção) serve como uma ruptura semântica e lexical que faz com que o leitor tenha uma maior liberdade para passear pelos seus textos. Continuando com o poema:

 

Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades humanas

Daqui vem que todas as coisas podem ter qualidades de pássaros

Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidades de sapo

Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidades de árvores

 

O termo "daqui" está se referindo ao reino das imagens e da despalavra, ou seja, a partir destes reinos tudo é possível. Compreendemos que a liberdade é o cerne deste fragmento, pois a confluência de coisas de reinos biológicos distintos que se misturam faz com que a idéia de separação deixe de existir, pois a pedra pode pular como um sapo, pode se mover, o poeta pode servir de abrigo como uma árvore, mas que também pode ser fixo. Dentro desta perspectiva, qualquer coisa, pode ser o que quiser ser. Em seguida:

 

Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros

Daqui vem que todos os poetas podem humanizar as águas

Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo com suas metáforas

Que os poetas podem ser pré-coisas, pré-vermes, podem ser pré-musgo

 

Nesta estrofe a convergência é mais nítida e direta, entretanto, cabe ao poeta fazer essa junção, pois é o poeta que trabalha com as (des) palavras, é ele que a cria, a constrói e que também se constrói através dela. Ao poeta cabe a transformação. Todavia, não existe nesta poesia a relação de superioridade entre o poeta e os outros elementos naturais, ele não é superior aos pássaros, as árvores, ele é mais um naquele emaranhando de coisas, ele é o ser agente e paciente simultaneamente.

Por fim:

 

Daqui vem que os poetas podem compreender o mundo sem conceitos

Que os poetas podem refazer o mundo por imagens, por eflúvios, por afeto

 

O final deste poema sintetiza bem o que Manoel de Barros pretende com a despalavra. E que é tese central na sua produção literária, a transformação e a quebra de alguns dos velhos paradigmas. A compreensão de que o poeta não precisa conceituar o mundo para compreendê-lo e transformá-lo, essa idéia é nada mais do que, o que o próprio Manuel de Barros já faz. Ao trabalhar com a criação de novas palavras, de novas ordens sintáticas, com uma renovação semântica, o poeta já está fazendo o que ele próprio afirma poder ser feito, ou seja, ele é referência dele mesmo. Assim, Manuel de Barros transpõem as palavras, junta o campo à cidade, a infância à idade adulta, o presente ao passado, para transformar o mundo. E nesta transformação a despalavra tem um papel fundamental. É por essas questões que a poesia de Manuel de Barros é experimental e é através desta experimentação que ele constrói sua arte.

 

 

 

Referências Bibliográficas 

 

 

 

março, 2008

 
 
 
 
Claudinei Damasceno Romão. Ensaísta, poeta, tem desenvolvido trabalhos sobre o poeta Augusto dos Anjos e a poetisa Florbela Espanca. Colabora na revista ABRELATAS da Editora Inverso. É graduado em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia-UNEB e professor de Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa.