A Paixão Segundo Eduarda

 

Duda e seus sapatos bonequinha sujos, a santa a meu lado, as pernas desejáveis & desejosas. Sempre com suas conversas quase mitológicas, a espuma do mar que era a porra de Cronos, da qual nascia uma putinha qualquer — nada daquilo era pra mim.

Eu pintava umas violências e de vez em quando me metia numas orgias parisienses, ou um que outro afeminado de maneiras afáveis, trepadas em sofás de casa de avó — parecia que todos os putos moravam com a avó.

Duda, à parte a beleza e tudo mais, pra mim era só mais uma putinha nascida da porra de não sei que deus canalha.

É verdade que, nesse ponto, eu me sentia já um personagem do Machado, que no meio do romance constrói um sistema filosófico absurdo que justifique sua cretinice — reuniõezinhas no meu apartamento, pedantismo e refluxos de consciência no sofá fúcsia.

 

Pastando as contas — o ó — um cinzeiro de argila tão bonito que fazia parte da terapia, quando. Meio voando sobre o ninho do cuco tomando meu café pra fumar. Petit-burgeois lendo Céline, com medo de dar o rabo, sonhando com heroína e altruísmo intelectual. Pintando uns quadrinhos, naturezas bostas — esperando a garrafa desencher. Olhando a lua, sabe, assim, e todo aquele papo bicho-grilo e cinema alemão e comunhão com o cosmos — tudo lixo.

Querendo mesmo é o cu cheio de dinheiro, vanilla icecream em Miami Beach — o Caiozinho dando pra um sargento de bigodes grossos — essas merdas todas mais um cara fazendo a volta na praça Coronel, "Eu te disse, eu te disse, eu te disse". Tentando resolver, dizia, eu estou tentando resolver — mas não é assim que se escreve uma carta de desculpas.

Cancelei uma obrigação banal e fui ao Sete assistir um tocador de flamenco — a parte racional do Troço. Depois a Duda e sua monografia, seu patrimônio histórico, sua caipirinha e suas meias brancas. "Além da coisa mítica, baby". Fumando um baseado e recitando Ginsberg, convencida da nossa beleza & ingenuidade & superioridade inatas.

A Lídia enchendo o saco, "Põe Beatles, tipo assim, Beatles" — eu escarnecendo: "Tu sabe que foderam com o Lennon, né? Cinco Tiros". Eu numa nóia meio bunda-mole de cheirar pó na capa do CD da Edith Piaf, ne me quitte pas, emocionado e levemente esquizofrênico ao sul de Graceland.

 

    
 
 
 
 

 

A Rosa do Amor ou Multivelocidade

 

         Essa náusea era, na falta de palavra melhor, "a coisa", inefável. Vinha me batendo contra as juntas transfeitas gelatinadas, o cigarro na medida certa da insatisfação. Ele, digo, vinha derretendo na esquina brumosa — era também aquele que insistia chamar de fog à cerração. O cinto, carmordido nas ânsias de banheiro, agora amarrava as mãos alvas da ninfeta. Aquilo — dizia — aquilo era o "it", aquilo era o inenarrável, o sonho de não haver uma manhã que desse a medida das coisas.

         Um estupro sem manhã, fi-lo repetir. Escandindo bem as sílabas: Um-es-tu-pro-sem-ma-nhã — e assim um maçarico contra a pele — a impossibilidade do grito. (A vida toda um prenúncio a essa meia suja enfiada na boca, mesmo o poema que afirmava serem todas as horas extremas).

         Éramos esses: o que se agulhava os braços — asceta, e torturador e torturado. E não havia medo, só a consciência opaca de que algo se passava, amoral.

         O homem do maçarico, o anglicista, não media os gestos. Sentia-se em toda a extensão da praça esse calor luminoso e as lágrimas se juntando à saliva da meia imunda. E eu inundado por essa piedade corrosiva e o desejo de receber meu cinto de volta, útil. Gotinhas escorrendo de três pontos: extremidade da agulha, canto do olho, rasgo dos lábios — o anglicista babava à moda de um rotweiller.

         Empurrar o êmbolo afastava proporcionalmente o mundo — minha visão no fundo de mim. Como olhar de trás, como olhar de longe a perversão da falsa vítima. Em todo flagelo um acordo — tácito, prático. Isto é degradação, sim, mas, segundo a moça semivestida, é também a última alternativa a domingos de TV a cabo e sadomasoquismo industrial, roupas de couro via Miami, hardcore soft porn.

         Essa náusea era o cheiro de gás que sucedeu o tremeluzir — no bico de fogo, nos olhos rasgados da moça. Enquanto isso, o ponto perfeito do cozinhar alquímico na colher, antes da primeira bolha eu apago o isqueiro. Mas o cheiro de gás, mas os olhos da moça, mas o anglicista medonho espremendo o corpo dela sob os coturnos — os bicos dos seios se esfregando contra a grama — todas as circunstâncias que apontavam ser a hora da preleção da semana:

         Honra teu pai e tua mãe, teu sangue e esperma, honra à saliva que lubrificou todos os enrabamentos de todos os séculos, honra tua violência mais que tua libertinagem, não é Sade nem Bukowsky nem droga nenhuma, é plastic explosion, a guriazinha linda com suas fotos expostas em toda parte, o corpinho macio e suave sendo perseverantemente maculado, semana após semana, honra tuas cicatrizes de gilete e minhas veias necrosadas.

         (E é claro que neste ponto já era meu discurso dedicado exclusivamente à moça — sempre acabo a elegia falando diretamente pra ela, todas as atenções invariavelmente presas ao seu corpo nu, espaços de pele suave — saborosa — intercalados pelas chagas de nossa ascensão: queimaduras de cigarro, nacos de carne à vista, feridas lentas secando).

           Assim é suficiente dizer que amo a moça que ama o carrasco que está se masturbando em sua própria vontade — amo, amar, amaro; sem medo, sem angústia. Na próxima sessão, talvez eu entregue a seringa ao anglicista — now you do it, lad — talvez eu recolha a moça num cobertor do Exército da Salvação — me amará? Deve, é necessário que me ame — lhe darei então conforto burguês, tardes de domingo, sexo bem-comportado-funcionário-público — me amará? — talvez a corte de gilete, a queime de cigarro, a esmague sob meus pés que sustentam desde sempre o peso absurdo do amor banal.

 

(imagens © anna k)
 

 

 

Esposas

 

        Meus dedos ficam apertados, torcidos, a câimbra deforma meu pé a ponto de ele parecer defeituoso. Eu sou uma mosca prestes a ser pega por um louva-deus, sou menos que nada, um infeliz medroso com as pernas retorcidas sobre um lençol sujo, sobre um colchão que já viu melhores dias, sobre a miséria que eu mesmo construí pacientemente enquanto convencia a todos que eu seria o próximo grande alguma coisa, um geniozinho dissimulado cheio de pretensões e avaliações promissoras de psicólogos e psiquiatras e açougueiros, todos os bastardos que me queriam sóbrio e útil, eu, a melhor cafeteira desenhada pela mão de Deus. Minhas pernas começam a ficar roxas, enquanto um músculo que eu não sabia que tinha pulsa involuntariamente na minha coxa, e eu observo os litigantes da minha salvação, cada qual querendo me aplicar um remédio diferente, me levar para um lugar diferente, sempre os meus salvadores crentes de ter todas as respostas. Alguém abaixa as persianas produzindo um estalido seco seguido do som de uma correia, um barulho amplificado pela minha doença a níveis insuportáveis, eu furaria meus tímpanos agora, se ainda pudesse mover algo além de meus olhos. Estou tendo a experiência singular de observar meu próprio velório, um pré-purgatório moldado de acordo com as babaquices cristãs, eu, a vítima inerte dos meus pecadinhos sujos.

         Princesa Rebeca procura nos meus olhos, que eu suponho completamente opacos, qualquer sombra de arrependimento, qualquer pedido de perdão de última hora, um milagre de natal com todas as cafonices presumíveis, mas nada. Princesa Rebeca, uma das três que resistiram até o fim, o duro e amargo fim, se me permitem chamá-lo assim, meu anjo amoroso e perpetuamente infantil, seus olhos verde-água sempre perscrutando uma bondade que me foi negada de berço. Eu tenho na boca o gosto amargo da filha do professor, a última mulher que devo provar, eu soube mesmo antes de beijá-la, uma viúva negra, a pequena, suas sobriedade e indiferença me assombrando por anos até me tomarem por completo nesses últimos e lamentáveis dias. E a meia-luz, escorada na parede, os olhos fundos por muito chorar, a última de minhas três esposas, a mais constante delas, seu corpo escultural dissolvendo-se na penumbra do quarto propositadamente mal iluminado, uma santa, esta terceira, mais tarde explicarei porque, desconfortavelmente escorada na parede rubra deste que deve ser meu último quarto.

         Ocorre-me agora que elas vão me enterrar vivo, as três de mãos dadas, enxugando as lágrimas umas das outras contra o céu cinzento desta cidade fundada sobre um pântano, esta cidade cuja umidade posso sentir ainda agora, na minha língua, no interior do meu nariz, invadindo os meus pulmões que funcionam a custo. "Ele ainda está vivo?" pergunta princesa Rebeca. Ele ainda está vivo? Ainda estou vivo? Isto ainda é a vida, essa coisa miserável e desprovida de propósito a qual fui atirado trinta anos atrás? Eu ainda sinto o ar pegajoso se movendo em mim como a mais suave das brisas, ainda tenho aqui o sopro que me fez de barro sujo em carne pulsante, essa coisa que nunca me foi sagrada, e não o será agora, só porque está por se extinguir, não, não hei de ser um metafísico de última hora, um Arrependido. Meu olhar agora está fixo no canto da janela fechada, algumas aberturas matematicamente escavadas deixam entrar uma luz purpura e sem vida, imagino que bela imagem eu seja sobre este colchão, endurecido, já menos um homem e mais um pedaço de carne que começa a apodrecer a olhos vistos.

         É agora que esta coisa que eu vaidosamente fui começa a se desfazer sutilmente, primeiro nos olhos dessas três abençoadas testemunhas, depois de boca em boca, na lembrança dos meus supostos amigos, daqueles que vagamente conheceram um pouco do que fui, sim, um mentiroso convicto, um homem de talentos duvidosos, um cantor de bar, um escritor inadequado, um polemista aguerrido. Nem mais um espasmo sequer desses pés que um dia andaram por aí, nem mais uma tosse, um grito de horror da boca assombrada, uma imobilidade completa que seria bem-vinda não fosse essa consciência que não se desfaz.

         Minha bela moreninha se aproxima de mim, posso sentir seu cheiro de coisa amanhecida, seu odor de quem desperta, eternamente. "Meu bem", ela diz, sua voz embargada como eu nunca ouvi antes, ela, a mais séria e fria das mulheres, ela que foi nos meus braços uma menina inabalável, que me teve, eu, o emotivo convulso, como joguete nas suas constantes redefinições do que era nosso romance, ela finalmente traz a voz trêmula das amantes desprezadas, das mães pesarosas, das crianças tristes. Vejo sua mão delicada passar sob meus olhos, vai fechá-los, ela, que me condenou em vida a completa ignorância de seu amor, me condena agora a escuridão durante meus últimos momentos, a mulher inalcançável para sempre, como se soubesse que ainda posso ver e não me quisesse testemunhando sua comoção deselegante.

         "Ele está mesmo morto?', repete Rebeca, sua voz seca como a de um soldado acostumado a ver os seus morrerem diariamente. "Morto", repete minha santa bailarina Elisa, a palavra dura seguida de um estalar de dedos que ela cultiva como tique, suas juntas grossas nas grandes mãos de mulher forte premindo-se. Ouço Camila engolir um improvável choro enquanto busca as palavras, sei que agora seus olhos escuros devem varrer a sala inteira, sua cabeça levemente inclinada para a direita, sua boca entreaberta esperando as palavras certas, sei que ela então abaixa os olhos por um instante, desaparece em si mesma como que para ter certeza do que dirá, imagino-a finalmente convicta, sem uma sombra de choro no rosto hispânico, o mais próximo da perfeição que me foi dado conhecer neste mundo. Posso vê-las em minha mente, as três, unidas no infortúnio, testemunhas do último suspiro daquele que foi sua vítima e algoz por quase uma década. Um último movimento no quarto me diz que estão abraçadas, olhando umas para as outras como nunca se permitiram antes, sem o peso do constrangimento, evitando olhar para o que ainda há de mim sobre a cama, fortalecidas e puras.

         Elas vão me enterrar vivo, as três, porque continuo ouvindo-as, porque nas correntes de ar deste quarto eu sinto seus abraços desajeitados, porque com meus olhos fechados posso ver a pequena Camila tomar a dianteira da situação e pôr sua mão em meu peito, morto e de olhos fechados ainda conheço sua mão sobre meu corpo, o toque mais difícil de conseguir e talvez por isso o que sempre foi mais desejado. Sinto seu rosto bem próximo do meu, tão próximo que seu hálito aquece minhas narinas, adivinho seus olhos oblíquos, como duas poças de água suja onde nunca é possível ver-se refletido, me encarando, isso tudo enquanto as outras duas esperam amedrontadas. Estou vivo ainda, querida, não sentes meu coração pulsar sob a pele macilenta?, não era assim que te referias a mim, o poetinha macilento?, não sentes esse coração que sempre esteve tão próximo da pele que empurrava tua cabeça quando deitavas sobre meu peito nos raros momentos de ternura?

         Ouço o rangido da cama, sinto o peso do corpo de Camila esvanecendo, sei que agora ela está de pé encarando as duas, sei que ela fala com a autoridade de quem esteve comigo nos últimos meses, de quem dividiu comigo o sagrado da morte. "Sim", ela diz, "Ele está morto". Elas vão me enterrar vivo, as três, porque a pequena Camila já deu o veredicto, e não importa que eu ainda possa escutá-las, não importa que eu ainda sinta seus movimentos no ar pesado do quarto. Nem mesmo importa que neste mesmo ar pesado eu possa dividir o cheiro das três, dividi-las em partes identificáveis, que eu possa saber mais delas do que elas mesmas sabem de si. De fato, sequer importa que isto tudo configure, de certa forma, ainda um resquício de vida em mim, nada importa, elas vão me enterrar. Elas vão me enterrar vivo.

 
 
 
 
 
Juliano Guerra (Canguçu-RS, 1983). É graduando em literatura francesa pela Universidade Federal de Pelotas-UFPEL, escritor e sambista. Descobriu a internet há poucos meses e está achando o máximo, talvez até aposente sua olivetti e comece a escrever nessa geringonça moderna. Acredita piamente no Machado e no Chico Buarque, mas duvida um pouco de todo o resto.