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"A maioria de nós sabe de que pais e avós descende. Mas estamos sempre recuando, mais e mais; todos nós voltamos exatamente ao começo de tudo; em nosso sangue, ossos e cérebro, carregamos as memórias de milhares de seres. (...) Não podemos compreender todos os traços que herdamos. Às vezes somos estranhos para nós mesmos"1

 

 

Tio Ali Bin Ali Hassan Muslim

 

A lojinha era simples, uns três metros quadrados com algumas prateleiras de roupas masculinas, típicas e oficiais. As túnicas brancas eram para o dia e as escuras se propunham pijamas. Num inglês híbrido — que exigia do ouvinte uma pitada de familiaridade com a gramática árabe — explicava a etimologia de seu nome. Bin quer dizer filho. Ele era Ali filho de Ali, já que seu pai morrera antes mesmo de ele nascer. Nem alto nem baixo, um pouco gordo, já havia chegado aos 60. Contou que os filhos já estão crescidos, casados e que hoje em dia mora somente com a mulher e uma empregada indiana. Tio Ali era sunita e havia então toda aquela atmosfera pró-Saddam, que se explicava. Tiramos a foto familiar oficial, todos a caráter. Trocamos endereços, prometemos nos ver novamente. Saí da loja com a esperada sensação de haver finalmente entrado no mundo árabe. A comparação que me veio pareceu  desmedida, mas lembrei-me de um Flaubert vagando, barbudo e paramentado, pelo Egito do seu fascínio. Meu amigo Gerson D'Addio fazia o papel de Maxime du Camp.

 

Dias antes, neste país completamente  novo e desconhecido, de gentes com uma toalha de convescote na cabeça, à la Yasser Arafat, havia despertado disposto a visitar o velho tio. Não  sabia, porém, onde morava, o que vinha fazendo ultimamente e nem o paradeiro dos filhos ou da esposa. Não poderia dizer se ele freqüentava a  mesquita de torres azuis perto do porto — que de tão simetricamente formosa, elegi como minha preferida. Não seria correto, inclusive, afirmar a sua existência. Nunca havíamos sequer ouvido falar um do outro.

 

Ainda assim, apostava num encontro. Meu cabelo espesso e escuro, pele levemente clara e nariz indeciso, mas um tanto adunco, acusavam um passado invasor, mughol e islâmico. Eram atavismos latentes que eu não podia e nem fazia questão de esconder. O jeito de amarrar o turbante poderia me expor, falsamente, como muçulmano da Caxemira. São magros e claros como você, me dizia um amigo, e muito, muito inteligentes. Sentia nessa afirmação um tom de ameaça, hindu e nacionalista.

 

O islamismo não passava, porém, de uma curiosidade religiosa. Depois de conhecer bem o cristianismo, o budismo e o hinduísmo, o islã não teria mais razão de ser exclusivo. Ensina Naipaul: "O islã, em sua origem, é uma religião árabe. Toda pessoa que não é árabe e é muçulmana é um convertido. O islã não é uma mera questão de consciência ou de crença pessoal. O islã estabelece exigências imperiais. A visão do mundo de um convertido se modifica. Ele repudia sua visão própria; se torna, goste disso ou não, parte da história árabe. O convertido tem de recusar tudo o que é seu. (...) As pessoas criam fantasias sobre quem são e o que são; no islã dos países convertidos existe um elemento de neurose e niilismo. Esses países podem facilmente entrar em ebulição"2. Embora esta seja uma visão pessoal e assustadora, ainda que histórica, tenho de concordar. Paradoxalmente, o islã era o que faltava para eu me sentir um indiano completo, dentro do universo de religiões, etnias, cores e sabores que é a Índia.

 

Buscar a sensação de ter um velho parente muçulmano. Laços perdidos, famílias separadas por invasões, guerras, migrações de gerações espalhadas pelo mundo, sem contato algum. Tendo aportado nos Emirados Árabes, calculei a real execução da minha fantasia. Foi assim que elegi Sharjah, que trazia o selo de capital cultural.

 

 

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Sharjah 

 

A questão era que não tínhamos a mínima idéia de como chegar lá. Pedindo informações a todos os muitos indianos que encontrávamos em Dubai, tomamos um ônibus para sair da cidade. Pelo caminho, íamos decifrando o ímpar alfabeto árabe, letra por letra, já que as placas eram bilíngües.

 

Ao chegar em Sharjah, pudemos ver alguma sujeira no chão, crianças nas ruas, poças de lama e coisas que, curiosamente, não encontrávamos na impecável Dubai — como se crianças também fizessem parte de algo ruim a ser evitado. Infelizmente, Sharjah ainda era moderna demais para o que eu buscava, considerando que a milenar Pérsia — hoje Irã — estava a poucos quilômetros de distância.

 

Pensando em almoços caríssimos de Dubai e em seus hotéis sete estrelas, fizemos uma pausa e comemos; sentados numa calçada qualquer; sanduíches de queijo com bananas de sobremesa. Rimos da nossa vontade de parecer pobres num local onde não se vê mendigos. Os menos favorecidos ali eram indianos que vieram trabalhar na construção civil. Vivem às dúzias, dividindo um único quarto, e sofrem preconceito por parte dos árabes nativos. Mas são trabalhadores, não mendigos. Eram esses que eu não via.

 

Francis, um amigo indiano cristão, penou por oito anos em Dubai. Não encontrava aqui os bons médicos da medicina ayurvédica que tinha à disposição na Índia. Estranhava que as consultas durassem somente cinco minutos, quando muito, e que um único remédio lhe fosse receitado, independentemente dos sintomas. Cansou. Hoje conduz turistas em Mumbai, onde vive com a mulher e a filha Rachel.

 

Em nosso  hotel,  descobri que quase todos os funcionários, do poliglota recepcionista ao faxineiro, eram indianos. Um empregado ligado ao sistema de transporte aéreo, nos contou, num ônibus coletivo, que está em Dubai há mais de 30 anos. Na Índia, mantém sua família com mais conforto. Era por isso que não víamos crianças indianas — e, raramente, outras por ali. Elas eram mantidas com as famílias na Índia, onde custavam menos. E no meio desse olhar investigativo demos de cara com um Forte na parte velha de Sharjah.

 

Chamado Al Hosn Fort, teve sua importância política no século XIX, já que fica na área portuária, e foi praticamente demolido em 1969. Antes, porém, já havia perdido parte de sua função, devido às invasões inglesas. À torre que sobrou foram somadas estruturas modernas em 1996, de acordo com o projeto original. Hoje, abriga um museu que conta a história do local, e é praticamente tudo de antigo no meio de prédios modernos. Salas bem cuidadas e climatizadas guardam objetos, moedas, armas, jóias e fotos dos nativos. Alguns retratos, ao som da incessante música árabe-ambiente, impõem uma rara conversa com o visitante.

 

Na parte velha de Sharjah, conhecida também como Heritage Area, encontramos um velho mercado, o Old Souq. Ali, pudemos tomar um irrecusável café turco, com sua borra sem açúcar e um leve sabor de cardamomo. Passamos pela loja do Tio Ali, mas ele não estava lá. Nestes emirados também convencionou-se o hábito da siesta. As lojas fecham durante o almoço e voltam a abrir depois das 16h. Embora num país muçulmano, não habituado a furtos e roubos, me chamou a atenção ver mercadorias expostas e desprotegidas, enquanto alguns donos dos quiosques simplesmente haviam ido dormir em casa.

 

Voltamos mais tarde. Desta vez as lojas estavam funcionando. Ao manifestar meu desejo de comprar um roupa típica, tive a certeza de ter encontrado meu tio. Ele nos convidou a entrar, nos serviu chá em sua minúscula loja. Experimentamos as túnicas e também aquele já mencionado pano na cabeça. Compras feitas, ele resolveu nos contar sua vida numa tarde preguiçosa e de memorável hospitalidade.

 

 

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Dubai

 

De volta a Dubai, eu já havia me habituado a um restaurante libanês, desses que a gente vê em São Paulo, mas muito maior, mais barato e generoso. Para não arriscar, comemos lá mais uma vez. A Pérsia, que não me saía da cabeça, de tão perto e ao mesmo tempo inacessível, apareceu novamente na forma de uma loja de doces iranianos. A balconista, uma filipina (depois dos indianos, devem ser a segunda maior comunidade em Dubai) que não entendia nada de comida persa, mas que era bastante simpática. Comprei uma espécie de carolina sem chocolate que, por ser o nome da moça da loja, exigiu explicações de que não se tratava de um flerte.

 

Andando por Dubai à noite, não conseguia apagar a imagem sinistra que havia ficado do local. Moderna, parece um cenário futurista de Hollywood. Essa roupagem rica, que surge em 1966 com a descoberta do petróleo, esconde o seu saldo histórico.

 

Em 1580, Dubai teve sua primeira referência escrita como Dibei anotada por um joalheiro veneziano — e já era um importante marco no comércio de pérolas. Sua vocação  comercial iniciou-se em séculos passados, quando já era porto livre de aduana.

 

As baixas da economia mundial no século XX também deixaram cicatrizes e fome por aqui, o que só começou a se dissolver com a exploração de petróleo. Hoje, é provável que tudo o que você tenha ouvido falar seja verdade: Dubai se propõe um ponto turístico sem par e sem impostos, limpa, moderna e quase kitsch, com sua inacabada mais alta torre do mundo, seu hotel símbolo — autoproclamado sete estrelas — seus shoppings centers com pistas de ski na neve no meio do que era um enorme deserto, suas ilhas artificiais com condomínios para milionários e suas vias que dificultam a vida de mochileiros.

 

Para se apresentar assim, Dubai assume uma arrogância que despreza o uso da energia solar — a fonte de energia mais do que óbvia para um deserto — utiliza, sem repor, os poucos recursos naturais de que dispõe, afeta a vida marinha com suas construções que avançam pelo mar e também não tem projeto algum para utilizar outra fonte abundante, a energia eólica. Para manter a aparente naturalidade de um suposto resort tropical, desaliniza a água a altos custos, energéticos e monetários. E o padrão de conforto que criou em seus hotéis caríssimos e shopping centers hi tech exigem ar condicionado durante o ano todo.

 

Lembra uma Matrix do filme homônimo, ou as megacidades só para escolhidos do filme Código 46, de Michael Winterbottom. Sua falta de identidade é gritante, com belas mesquitas ao lado de McDonald's e KFCs, dezenas de idiomas destilados em suas lan houses — postos onde imigrantes fazem dos e-mails, skypes, msns e video cams, pontes para estar com suas famílias. Tendo estado um pouco antes em Varanasi, a  mais antiga cidade indiana, eu sabia que não havia entrado no mundo árabe pela porta certa. Ir à Índia via Dubai é mais vantajoso em termos de conforto aéreo, mas pouco aproveitável culturalmente. Algo se aprende, é o que digo sempre.

 

 

Pistaches iranianos

 

Dia seguinte, entupi-me de pistaches no café da manhã. Percebi que era esse gosto verde e amendoado que eu queria levar comigo, para alimentar minha fome islâmica. E era um gosto diferente agora, não mais árabe. Era persa.

 

Na Índia, sempre experimento uma liberdade total, em todos os sentidos. De Dubai, saio com a sensação de que tudo é controlado, desde meu breve visto de 96 horas à apreensão do meu passaporte, devolvido minutos antes de eu ir para o aeroporto. No caminho, uma já velha — e apropriada — canção do Belle & Sebastian:

 

What did you learn from your time in the solitary
Cell of your mind?
There was noises, distractions from anything good
And the old prison food
Colour my life with the chaos of trouble
Cause anything's better than posh isolation
I missed the bus
You were laid on your back
With the boy from the arab strap
With the boy from the arab strap


 

 

 

 

Serviço

 

§          Se você pretende realmente ir a Dubai, saiba que, uma vez pronto, seu visto só terá validade de um mês. Uma das mais conhecidas operadoras de turismo de lá, porém bastante confusa, é a Arabian Adventures. Melhor conhecer e cotar outras, que podem ser contratadas logo ao desembarcar, no próprio aeroporto. Há pacotes para visitar o deserto, fazer safáris, compras, vida noturna, passeios de camelo, vista ao autódromo, campos de golf e muito mais.  Faça um cartão de milhagens da companhia aérea: www.emirates.com

 

§          Pacotes diretamente de São Paulo: www.raidho.com.br

 

§          O peculiar aeroporto de Dubai, com coqueiros dentro do saguão e discos voadores presos ao teto, é um grande shopping center. Todas as lembrancinhas e artesanatos, que parecem baratos à primeira vista, podem ser encontrados, com melhor qualidade, do lado de fora. Ao comprar um narguilé, que os libaneses chamam de shisha, prefira os que têm um estojo para viagem e verifique bem os encaixes da mangueira.

 

§          Há um tour que você pode fazer por conta própria, escolhendo quanto tempo deseja permancer em cada parada. Custa uns 50 dólares, mas evita táxis e aquela sensação de ter de fazer tudo em grupo. É o The Big Bus Company, ônibus britânico de dois andares, com um guia falando inglês ou, se você preferir, um serviço de fones de ouvido em mais sete idiomas, com comentários sobre os locais visitados: www.bigbustours.com - escolha a opção Dubai no campo choose destination

 

§          A lojinha do Tio Ali, nada turística,  fica no Old Souq, Shop #29, em Sharjah. Os museus e a parte velha de Sharjah: www.sharjahmuseums.ae

 

§          Al Safadi - Restaurante de comida libanesa: (clique aqui)

 

§          Guia Time Out de Dubai, em português: www.guiatimeout.estadao.com.br/6162

 

 

 

 

Notas e Referências Bibliográficas

 

 

março, 2008