Dilúvio

 

as águas cobrem as ruas

arrastando tudo

 

do outro lado junto ao muro

minha mãe. só os olhos

pedem que a recolha

 

tenho força de mil cavalos

e aquela flor

contra a corrente

 

tomo minha mãe nos braços

ela se encolhe

aqueço-a em meu colo

e devolvo-lhe o leite

 

 

 

 

 

 

Condição humana

 

 

visto preto e meu marido

é vivo

 

sou seu lençol

mãe de seu filho ausente

 

lavo seus colarinhos

não dormimos juntos

 

juntos

só colocamos

 

sal nas feridas

 

 

 

 

 

 

Sutil Vingança

 

estendo a cama e faço

a comida

 

entrego meu corpo e ainda

lavo a louça

 

mas

no varal

o lençol desfralda

a meio-pau

 

 

 

 

 

 

In memoriam

 

brigamos uma vez

por nada

um lençol sujo

 

te vi anos depois

no cine Avenida

já estavas doente

 

me aproximei conversamos

teus olhos castos

arrastavam um corpo

corrompido

 

rimos devagar

 

por um nada

(o lençol sujo)

não estive contigo

 

 

 

 

 

 

Refazer

 

lembra-te da sensação de água

e da penúltima aurora

estás vivo e enxergas

o que importam os mosquitos?

 

 

 

 

 

 

Passos

 

nunca fui das casas

que também não foram minhas

me abrigo — eis tudo — passa-se o tempo

mas minha vontade

é pertencer aos telhados

 

 

 

 

 

 

Maturidade

 

                            para Sócrates, o gato

 

esguio enfático

palmilha

tapete de pêlos

solerte enguia

mia

filosófico

olhos a meio

luz

lince

pequeno brincava

gentil felino

novelos cadarço

gato baseado

lasso

máximo esforço

extermina

insetos no espaço

descansa imenso

na sacada

vigia o vaticínio

ouve vibra quase

ousa

e logo repousa

 

 

 

 

 

 

Desadepta

 

fui ao teatro

levei nisso quase quatro horas

 

paguei

e me aborreci

 

quem faria tanto por um poema ruim?

 

 

 

 

 

 

Lexicógrafo

 

Adoro a parte ínfero-anterior

do teu osso ilíaco,

meu altar e salvação

 

Dizem por aí que não,

mas púbis, meu amor

é feminina

 

 
 
 

 

 
 
 

Pacifista

 

o esforço para me livrar

dos "homens da minha vida"

foi uma longa e tormentosa

trajetória

 

agora tenho um gato e somos

razoavelmente neuróticos

todavia

cada coisa respira em seu lugar

 

 

 

 

 

 

Sub-rosa

 

vêm das abelhas às vezes

essas vozes vespas

esses zumbidos vorazes

 

vem na poeira o tom

sussurrado que precede

o pulsar de um continente

 

é tênue o farfalhar

sub-rosa

primeiro de viés

 

depois pelas veias

pelas vértebras

rebentando os vasos

 

logo o coração transido

pula e chicoteia

incessante bater de panelas

um ferrão subjuga a aurora

 

 

 

 

 

 

Ante-sala

 

a noite passa lenta e fluorescente

purgam feridas

sobre a cama metálica

equipada para gestos mínimos

o corpo é vasto para delírios

e flutua inflado

pelos limites do quarto

onde se esgota

úmido

cada vez mais longe

da porta

 

 

 

 

 

 

VI 
 
nós duas na fotografia
tu já não estás
eu já não sou
 
 
 
(imagens©marta s.)

 

 
Helena Ortiz é brasileira, natural do Rio Grande dos Sul, radicada no Rio de Janeiro, onde edita o jornal de literatura panorama da palavra, atualmente em sua 66ª edição e é responsável pela Editora da Palavra. Publicou os livros de poesia Pedaço de mim (Porto Alegre: T&T Editores, 1995), Margaridas (Rio de Janeiro: Ed. Blocos, 1997) Azul e sem sapatos (Rio de Janeiro: Ed. Blocos, 1997), Em par (Rio de Janeiro: Editora da Palavra, 2001) e Sol sobre o dilúvio (Rio de Janeiro: Editora da Palavra, 2005). Em prosa, publicou Contos de Oficina 5 (Porto Alegre: Ed. AGE, 1994) e Mais ao sul do que eu pensava (Ed AGE, Porto Alegre, 1995). Tem poemas publicados nas revistas Continente Sul/Sur, do Instituto Estadual do Livro (Porto Alegre, RS); Cuadernos Montecariocas (Rio de Janeiro/Montevideo/Barcelona; Bolsa de Arte do Rio de Janeiro; cartões Telemar; Antologia dos poetas contemporâneos do Rio Grande do Sul; Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional; revista da Academia Brasileira de Letras; revista virtual Malabia, na revista Iararana, da Bahia e no livro Além do cânone, organizado pela professora Helena Parente Cunha.