Deuse
foi me apanhar no Solar da Fossa, onde morava metade da música popular
brasileira, na época. A moça franzina representava meu editor, Irmãos
Vitale, e viera, como
combinado, para conduzir-me em seu carro até a casa do crítico Yan
Michalsky — resenhista de teatro e às vezes, também, de literatura, do
Correio da Manhã. Dez em cada dez intelectuais cariocas da época o
liam.
Era
noite. Chegamos à casa agradabilíssima de Ipanema, atravessamos o
quintal comprido e fomos recepcionados pelo elegante e vaidoso Yan e seu
inseparável siamês. Inesquecível o olhar que o felino me dirigiu, assim que entrei.
Parecia ler meus pensamentos. Mas quem leu mesmo o que eu imaginava, em
meus poemas, foi Yan. E gostou muito. Esclareci que não tinha pretensões
maiores com eles, do que
fazer com que fossem copiados nos cadernos de
recordação das adolescentes de minha cidade, no sertão da Bahia. E que
me daria por muito feliz se fossem lidos um dia em Salvador,
levados, quem sabe, por
alguém que fosse estudar na capital.
"Mas
nenhum cais é tão vida, / que me faça ficar mais. / Antes, ponto de
partida ./ Por isso deixo esse porto, / nem muito bom nem tão mau. / O
mal foi um amor morto / de morte inatural".
Yan
recitou trechos deste poema.
Falava dos barcos do São Francisco e de minha inquietação
juvenil, pulando de porto em porto, abrigando-me em casas de estranhos
que, mais tarde, se transformariam em novos amigos. Minha missão na vida
— eu mesmo decidira — era a de cantar de graça e onde permitissem.
Pirapora, Paratinga, Januária, São Francisco, Caitité: casas noturnas,
serestas — pela namorada dos outros! E, complementando a função, deveria
compor minhas próprias canções e poesia.
Aquele
poema tinha também uma versão musicada, que mantinha a mesma idéia,
embora dita de maneira diferente. A música exige que o texto tenha uma
sonoridade própria para ser entoada em conjunto com uma melodia. Muitas
vezes pergunto-me qual seria a diferença entre o que é poesia,
propriamente dita, e isso que se convencionou chamar de letra, ao se
tratar de texto musicado. Jamais consegui explicar tão sutilíssima
distinção.
Mas
não é regra inexorável. Fosse isso, "Bela Bela", o poema de Ferreira
Gullar que Milton Nascimento musicou e gravou, teria batido na trave.
Claro que emplacou, pois, com uma tabelinha dessas, não dá para não sair
gol. E talvez não ficasse tão bonito, se o poema original tivesse sido
adaptado. Em suma, a poesia é um mistério. Tem fórmula secretíssima de
beleza, só comparável ao enigma do olhar de um gato siamês.
Falemos
novamente do encontro. Quatro ou cinco dias depois dele, foi publicado o
artigo em que Michalsky comentou meu trabalho. Fiquei surpreso por ter
sido impresso na edição de domingo, a mais lida. Ainda mais ao ver que a
matéria tomava toda a primeira página do caderno cultural e, mais ainda,
ao constatar que reproduzia o poema completo e que este era comentado
quadra a quadra.
Filho
de pastor batista, sempre fui obrigado a mostrar-me singelo em minhas
ambições. Embora nem sempre o fosse. Mas ficou o trauma: no que sou
aclamado, logo um inevitável sistema de defesa encabula-me e,
imediatamente, retraio-me, desejo sumir. Desse modo, senti-me
profundamente oprimido com a matéria. A impressão era a de que, de
Copacabana ao mais remoto subúrbio, observavam-me e escarneciam: "Lá vai
aquele presumido".
Liguei
para Deuse e reclamei. Ela ainda não havia lido. Insisti para que fosse
comprar o jornal e lesse comigo alguns trechos. Meia hora depois
retornou a ligação. Pedi que acompanhasse com atenção o segmento em que
o crítico apostava que, naquele poeta magro e inexperiente, de dezenove
anos, habitava um novo Carlos Drummond de Andrade.
Incrível
como aquele louvor descabido me fez perder para sempre o sentimento que
me empurrava de noite, tropeçando no escuro, ao encontro do papel e da
poesia. Nunca mais escrevi um poema. Daquela ocasião, apesar de ter sido
um verdadeiro prazer ter conhecido Yan Michalsky, trago principalmente a
recordação de ter sido ali que o dom de fazer poesia pura começou a
abandonar-me. Às vezes acho que a perda tem a ver com o olhar enigmático
do siamês. Creio tanto nisso que, se algum dia voltar a escrever poemas — além das
letras, que continuo produzindo — sem dúvida, dedicarei meu primeiro
texto àquele olhar misterioso, inexplicável como a
poesia.