Efígie de Vasco da Gama (Sines, 1469 - Cochim, Índia, 1524), navegador e explorador português.
Efígie de Dom Pedro II, chamado O Magnânimo (Paço de São Cristóvão, Rio de Janeiro, 1825). Foi o segundo e último Imperador do Brasil.

 
  
  

 

Uma das mais categorizadas biógrafas de Vasco da Gama, (o navegador que descobriu, para o Ocidente, o caminho marítimo para as Índias), assinalava, na apresentação de sua obra (escrita originalmente em francês), que teve muitas dificuldades com a biografia do almirante. Ao constatar que Portugal era  pródigo em homônimos, confessava ter-lhe sido difícil destrinçar o Vasco verdadeiro de outros tantos com o mesmo nome, que viveram na mesma época, no mesmo lugar. Dificuldade semelhante foi sentida por um jornalista brasileiro que se jogou à tarefa de reproduzir a trajetória de Pedro Álvares Cabral. Quase não haveria documentos sobre o Cabral que chegou ao Brasil e que se confundia com outros tantos. Ao que parece, quanto menor e mais antigo o país, tanto mais pessoas terão o mesmo nome. O grande número de Silvas, Correias, Cardosos, Silveiras e outros, que existem num país com a dimensão e a população do Brasil, seria a exceção, como uma das heranças que nos foi legada pelo pequenino Portugal. Não parece, porém, só de se lamentar.

         Faz pouco, ao ser entrevistado num programa de TV, o Prêmio Nobel de Literatura, José Saramago, quando perguntado sobre o que Portugal legou ao Brasil, e que faria parte de nossas mazelas, respondeu que 500 anos depois do Descobrimento, era em tudo inaceitável que os brasileiros ainda culpassem os portugueses pelos males de seu país.  Ou seja, ele perguntava, não sem razão, quando é mesmo que os brasileiros iríamos assumir nossos erros como parte do que fomos ao longo de 500 anos, independentemente de Portugal. Saramago escusou-se de falar da escravatura, dos degredados portugueses que iniciaram a povoação do Brasil e do centralismo burocrático da Coroa Portuguesa dos quais os nossos cartórios são apenas a ponta visível do resto do aparato que ainda mantemos. Afinal, a piada de que nós brasileiros, deveríamos devolver tudo para os índios, com o devido pedido de desculpas pelos estragos, é das poucas que fazemos com a nossa história. E em que os portugueses não são os únicos culpados. Saramago achava, em suma, que era hora de o Brasil assumir seus próprios erros. Não deixava de ter razão.

         Na verdade, os culpados pelo que somos pode e se deve a muitos fatores que nem sempre são só dos brasileiros, da sua população ou mesmo dos portugueses. Os militares que deram o golpe de 64 foram todos devidamente instruídos, em West Point, nos Estados Unidos. Pode se supor que tomaram o partido que julgavam que lhes cabia na disputa entre Estados Unidos e União Soviética. E que optaram pelo que se dizia, na época, serem os "valores cristãos e ocidentais", sem que entrasse, na sua conta, que apenas optavam por um dos lados, com a submissão que isso iria necessariamente redundar — contra os interesses do Brasil. E que eles diziam preservar.

Não haveria, portanto, a rigor, justificativa para o golpe. E há ainda quem espere o "mea culpa" dos militares. Mas o proverbial milagre de termos oito milhões de quilômetros quadrados, de nos constituírmos num só país e de sermos o que antropólogos e sociólogos como Gilberto Freire, Darcy Ribeiro e muitos outros celebram, com certo otimismo, como o de estarmos fadados, ainda, mais uma vez, "a um grande futuro", talvez devesse ser atribuído fundamentalmente a Portugal e a sua política, com os muitos e os inegáveis problemas que foi legado a sua ex-colônia. E sem muitos deméritos pela façanha que está subentendida na idéia de que a "língua é minha pátria" — como dizia o português Fernando Pessoa — e que redundou numa unidade política que espanta perante a divisão da América Espanhola. Que fala espanhol sem ser uma só pátria.

         Não faz muito, uma grande empresa multinacional organizou um concurso literário  para autores de língua portuguesa. Venceu um jovem angolano. No dia da entrega do prêmio, porém, ele fez uma observação que dá o que pensar. Disse com todas as letras que, ao contrário dos Estados Unidos e Inglaterra que se entremeiam indissoluvelmente, o Brasil e outros países de língua portuguesa não parecem levar muito a sério a idéia de que "a pátria" seria a língua dos lusófonos. Como exemplo, citava a raridade de concursos literários como o que ele venceu. E a verdade, aliás, incontestável, de que os brasileiros vêem Portugal mais ou menos à distância do Atlântico e não à proximidade cultural que é visível — do Oiapoque ao Chuí.

 

 


Pinhal de Leiria, Portugal. Floresta de pinheiro bravo, com uma área de cerca de 12.000 hectares.
Começou a ser semeada no reinado de D. Afonso III e intensificada no reinado de D. Dinis.

          A surpresa de alguns estrangeiros de encontrarem em Porto Alegre e Belém, os traços urbanos e arquitetônicos de Lisboa seriam alguns dos muitos indícios de uma relação imorredoura. De fato, parece ser assim, mas não em muitos sentidos. A depredação inegável que os portugueses promoveram à cata de ouro, ou de outros recursos naturais, pode ser assinalada como um dos aspectos decididamente negativos da influência portuguesa. Mas os portugueses proibiam a destruição da mata ciliar ao longo dos rios, mesmo no Brasil colonial. O exemplo do rei Dom Dinis (1261-1325), que dotou Portugal de uma das maiores áreas plantadas da Europa, em Leiria, — o famoso Pinheiral de Leiria — e que deu origem ao madeirame a ser usado cem anos depois na construção das caravelas que atravessaram os "Sete Mares", nunca deixou de fazer parte do repertório da Coroa Portuguesa. Dom Pedro II, Imperador do Brasil, não era da linhagem de Dom Dinis que, à parte o Pinheiral de Leiria (que ainda existe), fundou a Universidade de Coimbra. Era da dinastia dos Braganças que igualmente governou Portugal — mas não se sabe de nenhuma iniciativa de qualquer governante brasileiro que tenha, literalmente, mandado plantar uma floresta, como a de Tijuca no Rio de Janeiro, iniciativa de Dom Pedro II. E que se constitui num dos exemplos mais marcantes de cobertura florestal fomentada por uma autoridade brasileira em qualquer tempo.

         Evidentemente, são ações pontuais. O cineasta italiano Achille Pontecorvo no filme "Queimada", com Marlon Brando (e que foi proibido pela Ditadura Militar brasileira), denunciava o colonialismo português pela devastação que os lusos promoveram em algumas das ilhas que eles exploraram até a exaustão. Há muitos outros exemplos de depredação e de devastação promovida pelo colonialismo de todos os países, não só na América ou na África. Mas a expressão "madeira de lei" que define o tipo de árvore a ser preservada, vem dos tempos em que o Brasil ainda era um império, comandado por descendentes dos reis de Portugal. É uma expressão entranhada na língua portuguesa falada no Brasil que comparece como motivo condutor das denúncias de devastação das florestas brasileiras que hoje percorrem o mundo, como exemplo das mazelas que não podem ser imputadas aos usos e costumes dos portugueses, só dos portugueses.

         Parece haver, em suma, uma civilização portuguesa no mundo e da qual o Brasil faz parte como provedor mor, com tudo o que somos por nossa culpa, "nossa máxima culpa". Haveria ainda assim que usar o lugar comum de fazermos "nossas as palavras" de Mark Twain, escritor norte-americano, que ao se referir às diferenças entre os americanos e ingleses, dizia serem povos irmãos, "separados pela mesma língua".

 

 

 

 

março, 2008