© loredano
 
 
 
 
 
 

 

 

 

 

  

 

(Publicado originalmente em 1867)

 

 

Que é uma lágrima? A ciência dar-nos-á uma explicação positiva; a poesia dirá que é o soro da alma, a linguagem do coração. Bem pouco avulta essa leve gota de humor que os olhos vertem por alguma causa física ou moral. É nada e é tudo; para os ânimos práticos é um sinal de fraqueza; para os corações sensíveis é um objeto de respeito, uma causa de simpatia.

 

Alexandre Dumas comparou eloqüentemente o dilúvio a uma lágrima do Senhor, lágrima de dor, se a dor pode ser divina, que a impiedade arrancou dos olhos do autor das coisas.

 

Mas a lágrima cuja história empreendo nestas curtas e singelas páginas não foi tamanha como essa que produziu o grande cataclisma. Foi uma simples gota, derramada por olhos humanos, em hora de aflição e desespero. Quem tiver chorado achar-lhe-á algum interesse.

 

Conheci um homem de trinta anos que era o homem mais singular do mundo, começando por parecer sexagenário. Era alto, e daquela severa beleza que consiste em mostrar nos traços do rosto os sulcos de um grande e nobre sofrimento. Os cabelos eram todos brancos, caídos para trás sem afetação nem cuidado. Tinha os olhos fundos. Era pálido, magro, curvado. Vivia só, numa casa escondida lá para as bandas de Catumbi, lugar que ele próprio escolhera para não dar muito trabalho aos amigos que quisessem levá-lo ao cemitério. Poucas vezes saía; lia algumas vezes; meditava quase sempre.

 

Os seus passeios ordinários, quando lhe acontecia passear, eram  ao cemitério, onde se demorava habitualmente duas horas. Quando voltava e lhe perguntavam de onde vinha, respondia que fora ver casa para mudar-se.

 

Alguns vizinhos supunham-no doido; outros contentavam-se em chamá-lo excêntrico. Um peralvilho que morava alguns passos adiante concebeu a idéia de ir denunciá-lo à policia, ato que não realizou por lhe terem ido à mão algumas pessoas. Os meninos vadios do lugar puseram-lhe uma alcunha, e de tal sorte o perseguiam às vezes que o pobre homem resolveu sair o menos que pudesse.

 

Chamava-se Daniel, e, aludindo ao profeta das escrituras, costumava dizer que estava no lago dos leões, e que só por intervenção divina é que o não devoravam. Os leões eram os outros homens.

 

Não sei por que, desde que o vi simpatizei com ele. Tinha eu ido passar uma tarde em casa de uma família de Catumbi, onde me falaram das singularidades do velho. Tive curiosidade de conhecê-lo. Efetivamente passou ele pela rua, e todos correram à janela como se se tratasse de um urso. Percebi desde logo que aquele homem era uma ruína moral, a tradição de um grande padecimento, sustentada por urna existência precária. Resolvi tratar com ele, e comuniquei a minha intenção às senhoras que me rodeavam. Foi um motivo de chacota geral. Mas eu fiz parar o riso nos lábios das mulheres dizendo estas simples palavras:

 

— E se aquele homem padece por uma mulher?

 

As mulheres calaram-se; os homens olharam uns para os outros. Dali a oito dias fui bater à porta de Daniel. Apareceu-me um preto velho que me perguntou o que queria. Apenas lhe disse que desejava falar ao dono da casa, respondeu-me que ele saíra a passeio. Como eu sabia que o passeio era ao cemitério, dirigi-me para lá.

 

Apenas entrei numa das ruas da cidade dos mortos, avistei Daniel ao longe, sentado numa pedra, ao pé de uma sepultura, com a cabeça entre as mãos. Aquele aspecto fez-me parar. Era positivo que todas as excentricidades de Daniel estavam presas a uma história, que devia ser a história daquele túmulo. Encaminhei-me para o lugar onde o velho estava, parando a alguns passos, e conservando-me ao pé de uma campa, a fim de que lhe parecesse que um motivo, que não o da curiosidade, levava-me até ali.

 

De quando em quando levantava eu a cabeça para ver o velho, e achava-o sempre na mesma posição. Esperei uma hora que ele se levantasse, até que, perdendo essa esperança, tratei de retirar-me, quando vi ao longe, encaminhando-se para aquele lado, um cortejo fúnebre. Era mais um habitante que vinha tomar posse da sua casa na vasta necrópole. O ruído dos passos dos últimos amigos e conhecidos do novo locatário despertaram o velho, que se levantou rapidamente, lançou um olhar para a sepultura, e encaminhou-se para o lado do portão. Quis ver se a campa ao pé da qual o velho estava assentado tinha algum nome, mas ao mesmo tempo temi perder o velho, que andava rapidamente. Contudo apressei o passo, e pude ler rapidamente na campa estas simples palavras:

 

Aqui jaz uma mártir

 

Depois, dobrando de velocidade, pude alcançar o velho no momento em que ele estava já a poucas braças do portão. Ia falar-lhe, mas hesitei. Que lhe diria eu? Como explicar a minha curiosidade? Entretanto o velho andava, e eu atrás dele, até que nos achamos ambos à porta da casa.

 

— Queria alguma coisa?

 

— Um pouco d’água.

 

— Entre.

 

Entramos.

 

— João, disse ele ao preto que lhe veio abrir a porta; traze um copo d’água para este senhor. Queira sentar-se.

 

Não sabia que havia de dizer depois de ter pedido a água. O velho, apenas me viu sentado, tomou uma cadeira e sentou-se ao pé da janela. Os últimos raios do sol poente batiam-lhe na fronte encanecida e sulcada pelo sofrimento. Era venerável aquela figura tão humilde e tão resignada.

 

Veio a água, bebi e dirigi-me ao dono da casa.

 

— Obrigado, disse-lhe. Sou P... e moro...

 

— É inútil dizer-me a casa, interrompeu Daniel; o meu reino já não é deste mundo. Entretanto agradeço-lhe...

 

— Mas por que não é deste mundo?

 

O velho franziu a testa e respondeu-me secamente:

 

— Porque não é.

 

Era impossível tirar-lhe mais uma palavra.

 

Saí, mas levando a resolução de voltar outra vez até travar relações com o velho.

 

Com efeito, cinco dias depois fui a Catumbi, e bati à porta de Daniel. Achei o velho com um livro na mão.

 

Perguntou-me o que queria, e como eu lhe dissesse que era a pessoa que cinco dias antes estivera ali, respondeu-me que se lembrava e mandou-me sentar.

 

— Quer água outra vez? disse ele sorrindo tristemente.

 

— Não, não quero. Há de ter compreendido que eu não queria somente um copo d’água naquela tarde. Queria e quero travar conhecimento com o senhor, que me parece um excelente homem...

 

— Excelente, não... respondeu o velho.

 

— E sobretudo parece-me um inexplicável mistério.

 

— Isso talvez. Quer decifrar-me, não é assim?

 

— Quero estimá-lo, e para estimá-lo, creio que basta conhecê-lo. Compreendo que a minha curiosidade é um pouco excêntrica; mas queira perdoar-ma levando em conta que eu não zombo das suas singularidades nem faço conjecturas ridículas sobre o seu isolamento. Ao contrário, creio que ele é devido a alguma causa nobre e santa.

 

O velho refletiu alguns minutos e respondeu-me:

 

— Concluo de tudo isso que o senhor é mais curioso que o resto dos homens, porque eles contentam-se em investigar pela conjectura os sucessos da minha vida, ao passo que o senhor vem diretamente indagá-los de mim.

 

— Perdão, se acaso...

 

— Mas o que o salva é que o senhor me parece bom; sinto que não é simples curiosidade, mas um desejo invencível do coração, do coração que é tão raro...

 

— É isso mesmo.

 

— Pois, senhor, respondeu o velho, estou pronto para dar-lhe quantos copos d’água me pedir, mas não passe dos copos d’água; interrogar a minha vida é o mesmo que interrogar um sepulcro; os sepulcros não falam.

 

— Mas nada disso impede que o senhor vá interrogar o sepulcro daquela mártir...

 

O velho ergueu-se e lançou-me um olhar severo e perscrutador.

 

— Por que me diz isso? Bem sabe que eu chorei e choro por ela, e não tenho culpa...

 

— Eu nada sei, respondi.

 

Daniel conservou-se naquela posição alguns instantes. Depois tornou a sentar-se e cravou os olhos no livro. Eu não ousava romper o silêncio. Daniel, depois de algum tempo, levantou a cabeça e perguntou-me:

 

— Viu-me lá?

 

— Vi.

 

— Peço-lhe que o não diga aos seus amigos. Bem sei que o lugar é público, e todos podem ver-me; mas nem todos podem penetrar tanto como o senhor. Quer ser meu amigo? É tudo quanto lhe posso fazer.

 

Dizendo isto, estendeu-me a mão que eu apertei comovido. Depois conversamos, mas nada pude arrancar ao misterioso velho.

 

Voltei lá muitas vezes; Daniel de cada vez fazia-se mais amigo, mais confiante; mas sempre que eu arriscava alguma pergunta indiscreta o velho franzia o sobrolho e calava-se.

 

Um dia, porém, adoeceu, e como não tivesse ninguém mais para cuidá-lo, além do preto, eu, que havia entrado na confiança do velho, entendi que devia ficar ali algum tempo.

 

Cuidei dele como se fosse um amigo de vinte anos; o velho assistia à minha dedicação e mostrava-se enternecido. À força de cuidados restabeleceu-se Daniel, e entrou em convalescença. O médico que o tratou, e que era meu amigo, quando no fim da doença Daniel lhe perguntou quanto devia, respondeu sorrindo:

 

— Um aperto de mão.

 

Daniel apertou-lhe a mão sorrindo para mim.

 

Quando, pois, Daniel convalescia, estávamos uma tarde assentados à janela vendo o sol que descambava, eu conversando para distraí-lo, ele cismando.

 

Depois de algum tempo de silêncio entre nós, disse Daniel:

 

— P., tens dado prova de grande afeto por mim, e eu realmente não sei como to pagaria se não pudesse dar-te uma prova de extrema confiança.

 

— A mim?

 

— A ti. Aquilo que por tanto tempo tenho recusado dizer-te, o segredo da minha vida, a lembrança dolorosa de um passado que morreu, tudo vou depositar no teu espírito e no teu coração.

 

— Ah!... agradeço-lhe essa prova...

 

— Tanto mais que eu não posso estar longe da morte, e se esperasse mais algum tempo bem poderia acontecer que nada ouvisses. João, vai buscar a urna de ébano.

 

O preto, que entrava nesse momento, foi cumprir a ordem de Daniel, trazendo pouco depois uma urna pequena de ébano. Entregou-a ao senhor e foi para dentro.

 

O velho tirou do pescoço uma chavinha de prata, abriu a urna e tirou de dentro um pedaço de papel dobrado.

 

— Está vendo este papel? disse ele mostrando o que acabava de tirar de dentro da urna. Pois aqui está resumida a minha história.

 

— Em tão pequeno espaço? objetei eu.

 

— E há papel de mais, porque o resumo a que aludo ocupa aqui bem pequeno lugar.

 

Dizendo isto desdobrou o papel e mostrou-me sem deixá-lo.

 

Era meia folha de papel de peso tendo escritas no centro umas quatro estrofes.

 

— Sim, disse eu, é então o espaço que estes versos ocupam?

 

— Menos ainda: é o espaço que ocupa esta lágrima. Não vê?

 

Eu nada vi. Olhei espantado para o velho.

 

— Admira-se? Olhe aqui mais à luz, não vê esta pequena mancha quase imperceptível?

 

Olhei e nada vi. Estava o velho louco?

 

— Não vê? disse-me ele. É natural; porque o vestígio da lágrima desapareceu; mas os meus olhos, acostumados a vê-la desde o  princípio, ainda a vêem tão clara como então. Pois a minha história é a história dessa lágrima.

 

— Ah!

 

Quer ouvi-la?

 

— Sim, quero.

 

— Bem; vou contar-lha.

 

 

***

 

O velho começou:

 

Tinha eu vinte e oito anos quando meu pai me mandou de Pernambuco, onde nasci e onde residíamos, para o Rio de Janeiro, a fim de começar aqui a vida comercial.

 

Meu pai tinha alguma fortuna; mas assentava (e com razão) que os filhos deviam também fazer fortuna por si.

 

Vim recomendado para a casa de um negociante de nome Valadares, antigo amigo de meu pai, que já o não via desde vinte anos. Fui recebido perfeitamente e empregado logo na casa de fazendas por atacado que Valadares possuía.

 

Era eu, porém, um empregado especial, a quem o patrão tratava com especial carinho, que jantava todos os dias em casa dele, às Laranjeiras, e não deixava de ser convidado para todos os bailes e festas da família.

 

Valadares tinha um filho e uma filha. O rapaz chamava-se Alfredo e era um peralvilho da pior laia, que gastava em passeios e ceatas  a fortuna do pai, a ponto que este já estava disposto a fazer justiça por suas mãos prendendo-o em casa e alimentando-o a pão e água, a fim de ver se este regime de sobriedade curava-lhe o vício do desperdício.

 

Chamava-se a filha Elisa, e tanto havia que censurar no irmão quanto havia que louvar nela. Era bela e meiga, modesta e recatada; era um rosto e um coração angélicos.

 

O pai educou-os com extremo desvelo; mas quando se referia à filha, dizia sempre que era ela a boa terra onde a semente havia produzido, ao passo que Alfredo era comparado à terra sáfara onde a semente secara sem fecundação.

 

O filho sorria de um modo alvar quando o pai pronunciava essa dura sentença; a filha, porém, beijava o pai e ia dizer baixinho ao irmão alguma palavra de conselho.

 

Educada com severidade, Elisa não compreendia o que era uma moça namoradeira, e procedia tão bem, sabia aliar com tanta graça a polidez da sociedade ao recato dos seus vinte anos, que ninguém tinha de que se queixar dela, nem porque fizesse de menos, nem porque fizesse de mais.

 

Poucas pessoas freqüentavam a casa. Os mais assíduos e íntimos eram um major de infantaria, um segundo oficial de secretaria, um poeta e eu. O poeta era um mancebo, filho de um protetor de Valadares, que morrera pouco havia. Chamava-se o filho das musas Luís.

 

Reuniam-se freqüentes vezes as pessoas até aqui nomeadas, exceto Alfredo, que entrava para casa às quatro horas da manhã e saía ao meio-dia, isto é, apenas se levantava da cama.

 

Nessas reuniões tocava-se piano, cantava-se, conversava-se, tomava-se chá. O major jogava o xadrez com Valadares; o poeta recitava versos; Elisa enchia tudo com a sua graça e as suas palavras.

 

Ou fosse à força do hábito, ou fosse vontade do destino, o caso é que eu comecei a sentir-me impressionado pela filha do negociante. Eu era um rapaz de província, acostumado a uma vida obscura e modesta. Agradavam-me aqueles hábitos e aquela índole. Demais, era bela de rosto, e boa de coração. A minha impressão cresceu pouco a pouco até tornar-se um verdadeiro e profundo amor. Mas seria correspondido? Parecia-me que o era. Quando ela às vezes fitava em mim os seus grandes olhos, coava-me um fogo n’alma e parecia-me que era aquele olhar uma demonstração de sincero afeto.

 

Unir os meus dias aos dela, foi o meu primeiro e maior sonho. Mas como? Pedi-la ao pai era o meio mais natural, mas repugnava-me, pois que, além de ser eu um simples empregado recebido em casa por prova de confiança, receava que se atribuísse ao meu ato intenções menos puras e confessáveis.

 

Aqui entrava eu na luta suprema do coração e da consciência, do dever e do amor. Entendia que era decoro reduzir-me, mas esse silêncio era para mim o mais atroz de todos os suplícios.

 

Os dias corriam assim, e eu, se não podia ainda aspirar à glória de possuir Elisa, gozava ao menos da felicidade de vê-la e viver nos olhos dela.

 

Durou este estado sete meses. Disposto a sofrer em silêncio, resolvi por outro lado trabalhar muito, de modo a constituir um direito à mão da moça.

 

Notava eu, porém, que Valadares, até então meu amigo confessado, redobrava de afeto e de atenções por mim. Nos meus sonhos de felicidade conjecturei que o negociante, tendo percebido a minha paixão, aprovava-a do fundo d’alma, e talvez mesmo por inspiração da filha.

 

Um dia, era em outubro de 185... , estando no escritório a trabalhar recebi recado de Valadares para que fosse lá à casa à noitinha.

 

Fui.

 

Valadares estava no gabinete e mandou-me entrar.

 

— Deram-lhe o recado a tempo?

 

— Sim, senhor, respondi eu.

 

— Bem. Sente-se.

 

Puxei uma cadeira. Valadares limpou os óculos, e depois de algum silêncio perguntou-me:

 

— Não desconfia do motivo por que mandei chamá-lo?

 

— Não, senhor.

 

— É natural. Os velhos são mais perspicazes que os moços. O motivo é perguntar-lhe se não pensa em casar-se?

 

Olhei para ele com um movimento de alegria; mas ao mesmo tempo cheio daquele medo que acompanha o coração quando está prestes a colher uma grande felicidade.

 

— Não sei... respondi.

 

— Não sabe? Responde como se fora uma moça. É verdade que a minha pergunta foi talvez mal cabida. Responda-me, então: Não ama?

 

Depois de algum tempo respondi:

 

— Sim...

 

— Ama minha filha?

 

— Perdão, mas é verdade.

 

— Perdão de quê? São moços, podem amar-se; é amado?

 

— Não sei.

 

— Ah! mas eu creio que é.

 

— Ela disse-lho?

 

— Não, mas desconfio...

 

— Se fosse verdade...

 

— Há de ser. Pois se a ama e se quer desposá-la, nada de temores pueris, nem receios infundados. Eu não sou nenhum dragão.

 

— Mas como poderei aspirar a tanta felicidade?

 

— É boa! aspirando. Vou consultar Elisa.

 

— Pois sim...

 

— Vá para a sala.

 

Saí entre a alegria e o receio. Se ela não me amasse? Se aquilo tudo fosse ilusão minha e do pai? Ao mesmo tempo pensava eu que era impossível que ambos nos enganássemos, e embalado por tão lisonjeiras esperanças aguardei a resposta definitiva da minha ventura.

 

Daí a um quarto de hora entrava Valadares na sala com um sorriso animador nos lábios.

 

Fui direito a ele.

 

— Minha filha é sua.

 

Elisa entrou na sala logo atrás do pai.

 

— Ah! que felicidade! disse eu encaminhando-me para ela.

 

A moça abaixou os olhos. Estendi-lhe a mão, sobre a qual pôs ela a sua.

 

Era noite. Tamanha felicidade abafava-me: eu precisava de ar; e além disso tinha vontade de ver se, saindo daquela casa, desfazia-se o que me parecia sonho, ou se realmente era uma realidade bem-aventurada.

 

Preparou-se o casamento, que devia efetuar-se dentro de um mês. Valadares disse-me que eu entraria como sócio na casa, sendo esse o começo da fortuna que meu pai exigia que eu próprio alcançasse.

 

Elisa recebeu contente aquela proposta? amava-me realmente? Eu acreditei que sim. Mas a verdade é que a moça não diminuiu para mim o tratamento afetuoso que até então me dava; como não era alegre, ninguém reparava em que nada se lhe alterasse pela proximidade da união.

 

A diferença que eu notei então na casa foi que Luís, o poeta que lá ia, de alegre que era tornara-se triste e distraído. A mudança foi a ponto que eu compreendi que ele nutria por Elisa algum sentimento de amor. Provavelmente preparava-se para ser seu marido. Quis a sorte que as circunstâncias transtornassem esses planos. A culpa não era minha, pensava eu; é natural amá-la, basta conhecê-la.

 

Efetuou-se o casamento em novembro. Foi para mim um dia de felicidade extrema, com uma única sombra, é que Elisa pareceu triste logo desde manhã, e indagando eu a causa disse que se achava um pouco doente.

 

— Adiamos o casamento...

 

— Não, há de ser já.

 

— Mas se está enferma?

 

— Uma dor de cabeça; nada é.

 

A cerimônia foi celebrada debaixo desta impressão.

 

Assistiram a ela todos os amigos da casa, menos o poeta, que dois dias antes partira para o interior da província, onde ia, disse ele, ver um parente.

 

Quando eu me vi casado, senti tamanha satisfação que tive medo de mim. Agradeci mentalmente a meu pai o haver-me mandado para o Rio, onde aquela ventura me esperava.

 

Não lhe direi como correram os primeiros dias do meu casamento; foi o que costuma a ser, uma lua-de-mel. Elisa nada mudou do que era; à sua índole atribuí eu a circunstância especial de que, ao passo que eu me sentia ardoroso e cheio daquela glória de possuí-la, ela mostrava-se afetuosa, mas reservada, obediente e passiva.

 

— É natural nela; foi assim educada, pensava eu.

 

E não havia cuidado nem atenção de que eu não a rodeasse para que ela fosse feliz. A moça agradecia-me com um sorriso. Para mim aquele sorriso era uma luz do céu.

 

No fim de algum tempo, apareceu outra vez na corte o poeta, que vinha, dizia, de fechar os olhos ao parente, e trazia luto fechado. Ficava-lhe bem o luto, e não somente o luto das roupas, mas o do semblante que estava fechado e triste como uma campa que esconde um morto.

 

O poeta foi à nossa casa; mas Elisa não lhe falou, por estar incomodada, segundo mandou dizer. O moço voltou lá mais duas vezes sem que pudesse ver minha mulher. Não voltou lá mais.

 

Pouco depois soube que partira para os Estados Unidos. Ia buscar, disse ele ao major que freqüentava a casa de Valadares, um grande centro populoso que lhe servisse de grande deserto para o coração.

 

Desconfiei, como era fácil, que o amor de Luís não se extinguira, e que, preferindo o suicídio moral à desonra, buscava assim o esquecimento num exílio voluntário.

 

Passaram-se três anos quase, e por esse tempo adoeceu Elisa. Foi ao principio moléstia de pouca monta, mas agravou-se com os tempos, e um dia chegou em que o médico me disse que a infeliz estava tísica.

 

Podes acaso calcular a minha dor?

 

— Salve-a, doutor, exclamei eu.

 

— Sim, hei de salvá-la.

 

Com efeito, o médico envidou todos os esforços; ocultou a moléstia à enferma, por prudência; mas Elisa tinha a convicção da gravidade do mal. Emagrecia e empalidecia a olhos vistos.

 

Abandonei os interesses da casa a meu sogro, que, por sua parte, entregou-a aos cuidados do guarda-livros, e ambos nos ocupamos exclusivamente em cuidar da pobre enferma.

 

Mas o mal era fatal. A ciência nem o amor nada podiam contra ele. Elisa definhava; não longe estava a morte. Ao menos salvávamos a consciência de ter feito tudo.

 

Eu poucas vezes saía, e isso mesmo pouco tempo me demorava fora de casa. Numa dessas vezes, em que eu voltava, não achei Elisa na sala de visitas. A infeliz já poucas vezes se levantava; cuidei que estivesse de cama. Fui para lá; não estava. Disseram-me que tinha entrado no seu gabinete de trabalho.

 

Dirigi-me para lá pé ante pé.

 

Elisa estava de costas, sentada numa poltrona com um papel na mão; aproximei-me devagarinho, queria causar-lhe uma agradável surpresa dando-lhe um beijo.

 

Mas, no momento em que eu aproximava-me dela, vi que o papel que ela lia continha uns versos, e parava para os ler, quando vi cair sobre o papel uma lágrima.

 

Que era aquilo? De um lance compreendi tudo; não pude reter um pequeno grito, que ela ouviu e que a assustou.

 

Vendo-me pálido e de pé diante dela, a moça levantou-se a custo e curvando a cabeça murmurou:

 

— Perdão!

 

Queria ajoelhar, impedi-a.

 

Elisa não se perturbou; tinha no olhar a serenidade da inocência; mas o fogo que lhe ardia nas pupilas era já o fogo da morte. O susto que eu lhe causara apressou a catástrofe.

 

Elisa caiu-me nos braços; removi-a para a cama. À noite tinha dado a alma a Deus.

 

Compreendes o que sofri naquela funesta noite? Duas vezes fui fatal àquela pobre alma: na vida e na morte. Os versos que ela lia eram de Luís, que ela amava, e com quem não pôde casar porque adivinhara que o meu casamento era do gosto do pai. Fui a fatalidade da sua vida. E não menos fatal fui na morte, pois que a apressei quando talvez pudesse viver alguns dias, talvez pouco para ela, muito para o meu amor.

 

A dor de perdê-la foi dominada pelo remorso de havê-la sacrificado. Era eu causa involuntária daquele sacrifício tão sereno e tão mudo, sem uma exprobração, nem uma queixa.

 

Três anos esteve ela ao pé de mim, sem articular uma queixa, pronta a executar todos os meus desejos, desempenhando aquele papel de mártir que o destino lhe dera.

 

Compreendes que aquela sepultura que ali está perto de mim é a dela. É ali que eu vou pedir-lhe sempre com as minhas orações e as minhas lágrimas um perdão de que preciso.

 

E toda esta lúgubre história é a história desta lágrima.

 

Isolei-me, procurei na solidão um descanso; tomam-me uns por doido; outros chamam-me excêntrico. Eu sou apenas uma vítima depois de ter sido um algoz, inconsciente é verdade, mas algoz cruel daquela alma que podia ser feliz na terra, e não o foi.

 

Um dia em que ali estava no cemitério vi aparecer um homem vestido de preto, encaminhando-se para a mesma sepultura. Era Luís. Viu-me chorar, compreendeu que eu amava aquela que havia morrido por ele. Diante daquela sepultura a nossa rivalidade fez uma paz solene; trocamos um aperto de mão, depois do que saímos cada um por seu lado para nunca mais nos encontrarmos.

 

Luís matou-se. Não podendo achar o deserto na vida, foi buscá-lo na morte. Está ao pé dela no céu; é por isso que eu não vou perturbar lhes a felicidade.

 

Dizendo isto o velho curvou a cabeça e meditou.

 

Eu saí...

 

 

***

 

Ainda hoje uma ou duas vezes por semana quem for ao cemitério de Catumbi encontrará Daniel rezando ao pé de uma sepultura, cujas letras o tempo apagou, mas que o velho conhece porque ali reside a sua alma.

 

 

FIM

 

 

 
junho, 2008