© loredano
 
 
 
 
 
 
 

 

Curioso ou não, exótico ou não, agosto sempre foi considerado um mês no mínimo 'estranho' — facções da crendice popular e teias de superstição arraigadas a um 'inconsciente coletivo cultural', chegam até a sustentar o mote "agosto, mês do desgosto" [a essa sentença, prefiro manter incredulidade e, a la Machado, cultivar  irreversíveis ceticismo e desaprovação].

 

De qualquer forma, porém, podemos nos valer desse mote de 'estranheza' do mês e aproveitar para dar a conhecer um conjunto de contos a que José Galante de Souza, com intuição e senso de oportunidade, batizou de "estranhas fantasias machadianas". Realmente, sete contos publicados no ano de 1878, em O Cruzeiro — Machado nele colaborou, de março a setembro, também com crônicas (as significativas "Notas semanais"), poemas, peças teatrais, crítica literária e o importantíssimo romance Iaiá Garcia (emblema-mor da transição literária machadiana) —  detêm um teor, senão de 'estranhos', pelo menos algo inusitados, exóticos mesmo, a começar por seus títulos: "Antes da missa", "Filosofia de um par de botas", "Elogio da vaidade", "O califa de platina", "O bote de rapé", "Um cão de lata ao rabo". Em dois casos ("Antes da missa" e "O bote de rapé") pela forma narrativa (a eles, acrescente-se "Na arca", também de  1878 e em O Cruzeiro, já exibido aqui no mês de julho, como "conto filosófico" — o que, a propósito, corrobora a conotação relevante de experimentalismo desse ano, o conto em apreço funcionando como prenunciador do conjunto filosófico que viria na década de 1880, como exposto). Interessante, para dizer o mínimo, que todos os contos se deram à luz, em O Cruzeiro, assinados por Eleazar, um dos inúmeros pseudônimos machadianos [a propósito, consulte-se o livro Contos de Machado de Assis: relicários e raisonnés, agora publicado].

 

Todas essas histórias mesclam o filosófico com o psicológico, condimentadas pelo fantástico; e geradas justamente num período crucial da vida literária de Machado, época do início da 'metamorfose', anunciador do 'grande salto' que viria ao final dessa década e início de 1880 — que tanto intriga e instiga os estudos e os especialistas machadianos, período em que a criação tanto ficcional quanto não-ficcional de Machado é marcada pelo 'acirramento' do humor muito pessoal, do distanciamento crítico, da sutileza de análise, da reflexão sobre atitudes e comportamentos humanos, tudo mesclado à fina ironia em relação aos valores sociais.

 

Quanto ao psicológico, não poderia ser de outra forma, porquanto intenso e proeminente no pensamento cultural brasileiro por essa época, o conceito do inconsciente — aliás, disseminado no Brasil por meio da e pela Literatura antes mesmo do surgimento e sedimentação da própria Psicanálise: o psicológico, de resto, atua na obra machadiana, quer na terminologia por ele empregada, quer no discurso expositivo do narrador, quer na descrição dos estados subjetivos dos personagens. Machado, p.e., encontrou forte inspiração para descrição do  inconsciente na obra do filósofo alemão Édouard von Hartman (1842-1906), Philosophie de L'inconscient, publicada exatamente em 1877 (!) — livro que inclusive se encontrava no acervo de sua biblioteca pessoal — tendo num dos capítulos explanado sobre  o estilo literário e a atividade criativa, sustentando a invenção e realização do ficcional como derivados de processos do inconsciente, que é a matéria bruta com que um autor constrói sua obra; uma das formas proeminentes então de abordagem do inconsciente se dava por uma "função mitopoética", termo cunhado pelo psiquiatra Frederick Myers (1841-1901), uma região "média", subliminar, de onde se desenvolvia continuamente uma estranha produção de fantasia interior. Machado claramente absorveu e transpôs esses conceitos e pontos de vista nesse conjunto de contos.

 

Uma "anotação psicológica" está em "Antes da missa", narrado como diálogos em verso — insólito, pois, já em sua forma — sobre as hesitações e indecisões de uma mulher que entra e sai de uma igreja, sem motivos ou explicações aparentes, num exercício de prospecção intimista, que Machado poucas vezes (a não ser nos contos "Incorrigível", bastante similar em ideação por sinal, e "Um bilhete", este também já apresentado aqui, e no poema "Lágrimas de cera", de Falenas) praticou com tanta ênfase.

 

Em outro viés, o fantástico aparece aqui e ali, explícito em muitas passagens, implícito em outras, a requerer na leitura 'hesitação' entre uma explicação sobrenatural e a explicação natural dos acontecimentos evocados, Machado fomentando seu ardiloso processo de atrair o leitor  e  instigá-lo a sensibilizar-se com as situações enredadas nas  tramas, por vezes  fatos impossíveis de acontecer na realidade, mas perfeitamente enquadrados pelo processo de verossimilhança da narrativa machadiana, de que, nesse particular, o conto "Filosofia de um par de botas" — um inusitado diálogo entre os dois pés de uma bota... —  é absolutamente emblemático.

 

"Elogio da vaidade", por sua vez, é uma "fantasia" que lembra Erasmo a partir mesmo do título. Trata-se de uma proposopopéia em que a Vaidade assume a palavra e faz o próprio elogio, chegando por fim à conclusão, aparentemente paradoxal, de que a maior vaidade é a vaidade da modéstia: de certo modo remetendo  ao conto "Teoria do medalhão", é  peça bem própria de Machado, intimamente ligada, da mesma forma, ao conto "O espelho" e  a diversos outros — o que o torna, sem se constituir em 'novidade', em se tratando de Machado, também  um texto emblemático, inclusive no que abriga — prenunciando o que Machado utilizaria à larga em seu célebre processo de inflexão, mormente a partir de 1881, com Memórias Póstumas de Brás Cubas — os elementos da sátira menipéia, com a qual e pela qual reescreve, no conto, o Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam, a loucura substituída pela vaidade como energia criativa das ações humanas — o que reporta, por sua vez, ao conceito do "fantástico experimental"  de Chateaubriand, num encadeamento tal, que faz desses contos um dos mais instigantes conjuntos da safra machadiana.

 

agosto, 2008