© loredano
 
 
 
 
 
 

 

 

 

 

  

I

 

                 E, reconhecendo as boas qualidades do dito meu sobrinho Gaspar, declaro que o nomeio meu universal herdeiro, com duas condições essenciais; a primeira (deixada ao seu critério), é que há de relar os cabedais que lhe lego como os relei durante a minha vida; a segunda (cujo cumprimento precederá a execução desta parte do meu testamento) é que há de casar com minha tia D. Mônica, senhora de altas e respeitáveis virtudes...

 

A leitura das linhas transcritas acima e fielmente copiadas do testamento com que morreu o capitão Matias do Nascimento, no dia 2 de novembro de 1857, produziu no sobrinho Gaspar duas impressões tão profundas quão diferentes. A alma de Gaspar subiu ao sétimo céu e desceu para o último abismo, de um lance fez toda a jornada de Dante, ao invés, subindo ao Paraíso e caindo de lá no derradeiro círculo do Inferno onde o diabo lhe apareceu, não com as três cabeças que o poeta lhe dá, mas com pouco mais de três dentes, que tantos possuía a tia de seu tio.

 

Não traiu, entretanto, o rosto do rapaz aquela impressão diferente; a situação pedia um ar compungido, e Gaspar estava ao nível da situação. Ouviu a leitura até o fim, levantou-se, e foi desafogar a cólera consigo mesmo. Digo a cólera porque o mancebo de quem se trata contava a morte do capitão Matias como um dos sucessos mais afortunados da vida; esperava por ele imenso tempo, na doce confiança de um legado volumoso. Em vez de simples deixa, caiu-lhe nas mãos a herança toda. O tio fora além do que ele supunha merecer: era um tio digno de um mar de lágrimas. Gaspar não tinha lágrimas, mas tinha um lenço, músculos obedientes, e toda a escala dos sentimentos nos olhos, que eram negros, rasgados e verdadeiramente bonitos. Mediante o lenço, os músculos e os olhos, pôde suprir as lágrimas e compungiu a todos pela dor que aparentemente lhe rasgava as entranhas.

 

Tudo isto era de efeito salutar se pudesse suprimir D. Mônica. Mas D. Mônica existia, com seus sessenta anos, os seus cabelos apenas grisalhos, as suas flores no chapéu, a sua elegância de 1810. Gaspar conhecia perfeitamente o abismo a cuja beira o lançara o capricho do tio; capricho sagaz e previdente, porque dispunha as coisas para o caso em que o herdeiro recusasse adotar a condição imposta: nesse caso, dizia o testamento, toda a herança caberia à mencionada D. Mônica.

 

— Deus o tenha consigo! exclamou Gaspar, sozinho no quarto; mas não há negar que tinha tanto juízo como este chapéu de sol. Que quer dizer semelhante condição de amarrar-me à tia Mônica? Realmente, só por zombaria ou coisa análoga; suponho que estava a caçoar de mim...

 

Este monólogo que aí fica em resumo, foi interrompido pela entrada de um amigo de Gaspar, o bacharel Veloso, rapaz de trinta anos, frio, pacato, sem ilusões nem estudos. Veloso era companheiro de infância de Gaspar, seu confidente, e não poucas vezes seu Mentor ao pé das Calipsos de arribação.

 

— Será certo o que me disseram agora? perguntou Veloso apertando a mão ao companheiro. Teu tio nomeou-te seu herdeiro universal...

 

— É certo.

 

— Mas com a condição de te casares com D. Mônica.

 

— Tal qual.

 

— Se recusares, perdes tudo?

 

— Se recusar, a tia Mônica virá a ser herdeira, respondeu Gaspar passeando no quarto. Nada menos que um modo de obrigar-me a casar.

 

Veloso sentara-se sacudindo a cinza do charuto e sorrindo da condição da herança. Houve alguns instantes de silêncio. O primeiro que o rompeu foi o bacharel.

 

— Não, disse ele, respondendo à última reflexão do amigo; não é isso. O que ele quer é deixar D. Mônica sua universal herdeira. É claro que, se recusar, recebe tudo. Muito tola será se consentir em casar contigo, fazendo uma ridícula figura. Poupa-se aos comentários do mundo e recebe ainda em cima trezentos contos...

 

Gaspar estacou no meio da sala. A observação de Veloso pareceu-lhe exatíssima; ao passo que a soma da herança produziu nele violentíssimo abalo.

 

— Tens razão, disse Gaspar ao cabo de alguns minutos; há de ser isso. O que ele queria era favorecer a tia Mônica, levando a minha gratidão. Dois reconhecimentos de um golpe: não era mal calculado.

 

Gaspar arrependeu-se logo deste necrológio, em que entrava muito pouco reconhecimento. Intercalou no discurso um elogio às qualidades morais do tio, discurso interrompido por alguns apartes restritivos do bacharel, os quais apartes não eram refutados com a força que era de esperar da parte do orador. O que se podia concluir do discurso e dos apartes é que o tio Matias não passara nunca de um estimável paspalhão.

 

— Há alguém que sente mais do que tu a cláusula do testamento, disse Veloso sorrindo, adivinhas, não?

 

— Lucinda? É impossível.

 

— O pai dela.

 

— Acreditas que o comendador?

 

— Acredito que entrava muito nos cálculos dele a provável herança de teu tio. Não direi que te recuse agora a filha; ainda que não seria para admirar...

 

— Pode ser que lhe não fosse indiferente um genro com dinheiro; observou Gaspar, não creio, porém, que a cláusula do testamento o leve a opor-se aos desejos da filha.

 

— Não digo que não. Pela tua parte estás resolvido a abrir mão da herança?

 

— Oh! de certo!

 

Veloso levantou-se.

 

— Muito bem! disse ele.

 

— Aprovas-me?

 

— De todo o coração; tanto mais que...

 

— Que...

 

— Que esperava outra coisa.

 

— Ofendes-me.

 

— Sou apenas prático, respondeu Veloso sorrindo. Eu creio pouco no desinteresse, sobretudo ao pé de trezentos contos. Vejo que és exceção; tanto melhor para ti... e para ela.

 

— Obrigado!

 

Gaspar estendeu a mão a Veloso, que a apertou com efusão. Veio o moleque chamá-los para jantar. O jantar foi melancólico e silencioso; a presença dos criados não exigia outra coisa. Além disso, não é certo que tenham bom sabor as sopas de um deserdado.

 

 

II

 

A noite foi desconsolada e triste. E tão triste como a noite foi a seguinte madrugada, que viu o nosso Gaspar de pé, com os olhos cansados de não dormir.

 

Não era para menos o malogro da véspera. Gaspar vivia há cerca de seis anos somente para o tio Matias, único parente seu, além de D. Mônica; cercava-o de todas as atenções, as mesmas com que se guarda na carteira um bilhete de loteria. O tio gostava dele e dizia-o e provava-o. Era um velho bom, afável, talvez caprichoso e maníaco, mas em todo caso as boas qualidades superavam as aborrecíveis. Gaspar só lhe via o melhor lado; ao menos não dizia outra coisa. Era o seu parceiro obrigado ao gamão, o seu companheiro nos passeios que ele gostava de dar às vezes de manhã; o mais fiel agente dos seus negócios, e até o leitor obrigado dos debates parlamentares. Matias não tinha partido, não o tivera nunca; mas o seu lugar, qualquer que fosse o partido dominante, era a oposição. Nasceu oposicionista, como outros nascem governistas, pura questão de temperamento. Gaspar, que entendia tanto de política como de sânscrito, mostrava-se, entretanto, interessado e curioso e dava forte apoio às objurgatórias do velho Matias.

 

— Há hoje muito discurso? perguntava este.

 

— Página e meia de Jornal.

 

— Que maçada para ti!

 

— Maçada? Ora! Além do prazer que lhe dou, tenho eu próprio muito gosto em ver bater este governo sem critério. Já viu nada mais desconsolado?

 

— Não me fales nisso!

 

E as colunas da folha caíam dos lábios de Gaspar nos ouvidos de Matias, intercaladas pelas ruidosas pitadas deste ou pelos comentários de um e outro.

 

Ora, todo esse trabalho de tão longo tempo ficou repentinamente perdido: os juros que ele contava receber do vasto cabedal de atenções, carícias, sorrisos, enfados de toda espécie, esses gulosos juros iam-se-lhe sem deixar o mínimo rastro e o pobre Gaspar voltava aos seus ordenados de modesto empregado público.

 

O malogro era de afligir o mais pacato. Gaspar faltou à repartição além dos sete dias de nojo, mais uns cinco, quase meio mês ao todo, que lhe foi descontado na folha do pagamento. Além disto, que era já bastante, aconteceu que um ou mais dos colegas souberam do testamento de Matias, da herança de Gaspar e da cláusula que aquele lhe pusera resultando deste conjunto de fatos a convicção geral na repartição de que o casamento de Gaspar e de D. Mônica era coisa certa. Um colega imediatamente inferior a ele chegou a pedir-lhe a sua intervenção para que o ministro lhe desse o lugar no dia em que ele, endinheirado, pedisse demissão.

 

— Qual demissão, qual casamento! respondeu desabridamente o pobre herdeiro, resposta que foi repetida de boca em boca entre os colegas e comentada durante três dias.

 

Uma só coisa podia consolar, consolar é exagerado — fazer esquecer por alguns instantes o esvaecimento da herança; era Lucinda. Lucinda era uma mocinha de dezessete anos, cabelos castanhos, olhos da mesma cor, rosto oval e pé de sílfide. O pé foi o laço em que o sobrinho de Matias caiu. A metáfora pode não ser nova nem bonita, mas é perfeitamente exata. Lucinda sabia que tinha um pé formoso, esguio, leve, como devem ser os pés dos anjos, um pé alado, quando ela valsava e deixava entrevê-lo todo no meio dos giros em que se deixava ir. Sabia disso e gostava de que lhe admirassem o pé; daí resultava que, por mais comprido que fosse o vestido de Lucinda, não havia hipótese de estar ela assentada sem mostrar a pontinha do sapato. Et tout le monde sait qu'elle a le pied charmant, podia dizer o poeta. Gaspar fazia como tout le monde; via o pé e adorava-o. Acontece que entre tantos admiradores, Lucinda só esperava um, aquele que lhe falava ao coração; esse foi Gaspar. O resto adivinha-se. Amaram-se, disseram-se e pediram-se... um ao outro. O comendador Lima, pai da moça, percebeu as conferências ideais e sentimentais entre o pé da filha e a alma do rapaz, e não lhe pareceu mau casamento.

 

— É bom moço, pensou ele, empregado sério e tem cabedais no horizonte; posso dar-lhe a pequena.

 

Gaspar entendeu pelo rosto amável do comendador que o seu pedido não viria fora de propósito, e planeava o meio de requerer a moça com o consentimento do tio quando este se lembrou de mudar o domicílio passageiro pelo eterno, deixando-lhe o dinheiro e a tia.

 

A situação mudara; contudo não lhe pareceu que o comendador mudasse muito com ela. Achou-o certamente mais reservado e algo frio; mas a filha estava tão contente que ele sentiu renascer-lhe a abalada confiança.

 

— Já sei que me deixas, disse a moça com um tom de tristeza

 

— Deixar-te?

 

— Não te casas?

 

Gaspar levantou secamente os ombros.

 

— Isso não é resposta, disse a moça.

 

— Que queres que te diga?

 

— Que me amas... que não me hás de trair...

 

— Lucinda!

 

— Lucinda não é resposta.

 

— Criança!

 

— Ainda menos!

 

— Pois sim; não te hei de trair... Trair por que e por quem? Julgas-me um...

 

A moça desatou a rir, uma risada que faria morrer a D. Mônica, se a ouvisse e percebesse a coisa, e os dois namorados passaram a falar do seu futuro. O que os namorados dizem de seu futuro não é coisa nova para ninguém; dizem tudo e não dizem coisa nenhuma, eloqüência divina, que é melhor experimentar, que julgar, mas julgue-a quem não experimentá-la.

 

 

III

 

D. Mônica soube da cláusula de testamento com viva demonstração de desagrado. A disposição pareceu-lhe zombeteira e cruel a um tempo. Não era melhor, se o sobrinho queria favorecer os seus dois parentes, repartir com eles os trezentos contos? Esta foi a primeira reflexão. A segunda foi de agradecimento, porquanto a recusa da parte de Gaspar vinha constituí-la herdeira de toda a riqueza, e a cláusula testamentária redundava toda em proveito dela. Não sei se isto é interesse e egoísmo, sei que foi a reflexão de D. Mônica. Não foi porém a última; foi apenas a segunda, a que ainda sucedeu terceira e quarta. D. Mônica refletiu que havia no testamento uma lacuna, e era o caso em que, disposto Gaspar a desposá-la, não estivesse ela disposta a aceitar-lhe a mão. A quem pertenceria nesse caso a herança? Parece que ao rapaz, visto que não casaria por motivo independente de sua vontade. Enfim, D. Mônica perguntou a si própria, se o casamento, em tal idade, era coisa tão fora de propósito que a obrigasse a recuar. A resposta foi negativa, por duas razões: a primeira é que o sobrinho Matias não disporia em testamento um absurdo, uma coisa que lhe ficasse mal a ela. Sempre o conhecera respeitoso e seu amigo; a segunda é que ela mesma sentia em si alguns restos das graças de outro tempo.

 

D. Mônica relanceou os olhos para o espelho, compôs as duas tranças do cabelo, presas sobre a nuca, a fim de lhes dar um ar menos sustoso, estudou-se com atenção, e concluiu que, se não era moça, não era de todo rejeitável. Uma idéia desta é mais difícil de nascer que de morrer. Uma vez nascida no espírito de D. Mônica, entranhou-se como uma verruma. Vinte e quatro horas depois era resolução assentada; mas, como a consciência busca muita vez iludir-se a si própria, D. Mônica lançava a resolução à conta da afeição que tinha ao rapaz.

 

— Que razão tenho eu para retardar a herança que o tio lhe deixou? dizia ela dentro de si. Aceitando o casamento, evito chicanas e perda de tempo. Demais é sempre digna de respeito a última vontade de um morto.

 

Gaspar foi ter com a tia-avó, alguns dias depois de voltar à Secretaria. Ia resolvido a dizer-lhe francamente a razão que tinha para não aceitar a condição imposta pelo tio, razão que o leitor sabe ser o amor de Lucinda, além do horror que inspirava a idéia de obedecer naquele ponto ao tio.

 

D. Mônica vestira-se nesse dia com singular apuro. Tinha um vestido de gorgorão preto; sério na cor, mas risonho na forma, que era um complicado de folhos e babados. Os cabelos dobravam-se em bandós e enquadravam-lhe o rosto, cuja expressão não era severa nem desconsolada. D. Mônica deixava-se estar na poltrona, quando lhe anunciaram o sobrinho. A poltrona era larga, pouco mais larga que a tia do capitão, que tinha as formas amplas e refeitas.

 

— Bem-vindo seja o senhor Gaspar! exclamou ela logo que o viu assomar à porta. Cuidei que nunca mais queria ver a sua única parenta.

 

— Que idéia! respondeu o moço. A senhora sabe não podia haver tal esquecimento da minha parte.

 

Disse, e, aproximando-se dela, beijou-lhe respeitosamente a mão. D. Mônica deu-lha com uma graça estudada, mas que lhe não ficou mal de todo.

 

— Senta-te aqui, disse ela apontando para uma cadeira que lhe ficava ao lado.

 

Gaspar obedeceu. Apenas sentado, reconheceu que era mais fácil planear que executar. Calou-se durante algum tempo, sem saber por onde começasse. D. Mônica veio em seu auxílio.

 

— Como vai o inventário do nosso pobre Matias? perguntou ela.

 

— Vai andando, respondeu Gaspar escondendo um charuto que casualmente tiram da algibeira.

 

— Fuma, fuma, disse D. Mônica sorrindo.

 

Gaspar agradeceu e acendeu um fósforo continuando a resposta.

 

— O inventário não levará muito tempo; toda a questão será o negócio da herança...

 

— Da herança! Por quê? perguntou D. Mônica. Há algum herdeiro que reclame?...

 

— Não há nenhum. A senhora sabe que meu tio nomeou-me seu herdeiro universal, com a condição...

 

— Sim... interrompeu D. Mônica.

 

— Peço-lhe que acredite que eu nunca ousaria exigir da senhora um sacrifício...

 

— Eras capaz de sacrificar a herança? perguntou D. Mônica olhando para ele admirada.

 

— Era.

 

D. Mônica refletiu alguns instantes.

 

— Compreendo os teus sentimentos, e admiro o teu desinteresse. Espero contudo que me farás a justiça de crer que eu não consentiria nunca em deserdar-te...

 

Desta vez foi Gaspar que olhou admirado para D. Mônica.

 

— A vontade do capitão era beneficiar-nos a ambos, continuou D. Mônica. Pareceu-lhe que o casamento correspondia às suas intenções. Não refletiu, de certo, na disparidade que há entre mim e ti; não se lembrou de que podia expor-nos um e outro aos comentários do mundo.

 

— Justamente, respondeu Gaspar.

 

— Mas o capitão morreu e não pode reparar o mal. Pela minha parte, doer-me-ia se contribuísse para que perdesses a herança... Que razão alegaria eu para fazê-lo? A tal ou qual distância entre as nossas idades; não tenho porém nenhum direito a demorar-me nessa consideração.

 

— Mas...

 

— Um casamento entre nós será uma formalidade necessária para receber a herança. Não tenho direito de recusar a formalidade como não teria de recusar a minha assinatura se esta fosse precisa.

 

— Oh! minha tia! exclamou Gaspar, o seu coração é bom, mas posso eu abusar...

 

— Não há abusar...

 

— Nunca!

 

— Nunca e sempre... São duas palavras que pedem reflexão, interrompeu D. Mônica levantando a sua pachorra. Até outro dia! Não sou tão má como poderias supor... Adeus!

 

— Mas...

 

D. Mônica estendeu-lhe a mão sorrindo, e sorrindo com tanta arte, que só um dos dentes lhe apareceu. Gaspar beijou-lhe a mão; a boa velha encaminhou-se para uma das portas que davam para o interior. Gaspar ficou pasmado na sala. Dois minutos depois transpunha a porta que dava para o corredor e descia as escadas.

 

— Esta agora é melhor! pensava ele. De maneira que a velha sacrifica-se para me dar gosto?

 

Vinte minutos depois encontrou Veloso.

 

— Sabes o que me acontece?

 

— Não.

 

— Acho disposição em tia Mônica para casar comigo.

 

Veloso encostou-se a um portal para não cair. Quando pôde recobrar a fala:

 

— Impossível! disse ele.

 

— Parece impossível, mas é a pura verdade.

 

— De maneira que tu...

 

— Vou mandá-la ao diabo.

 

Tais eram efetivamente as intenções de Gaspar. Durante oito dias não voltou à casa de D. Mônica, não tanto porque as disposições da velha o irritavam, mas porque andava tomado de terror. A cada passo parecia-lhe ver um padre, um altar, a tia e o casamento celebrado sem remissão nem agravo.

 

 

IV

 

Entretanto, Lucinda entrou a desanimar um pouco nas suas esperanças matrimoniais. A situação de Gaspar era pior do que antes; e sobre ser pior não lhe falava ele em coisa que se parecesse com casamento. Quais seriam as suas intenções, e que desilusão lhe preparava o futuro? Um dia abriu-se com ele.

 

— Oh! Descansa! respondeu Gaspar, serás minha ainda contra a vontade do céu...

 

— Não blasfemes!

 

— Falo-te assim, para te mostrar a resolução em que estou. E já que me falaste nisto, dir-te-ei que ainda é tempo de refletir. Bem sei que não amaste em mim os bens da fortuna, que aliás nunca tive. Contudo, é bom que vejas a situação em que me acho. A pouca esperança que podia haver de melhorar de sorte esvaeceu-se; nada tenho, além do meu trabalho. Queres-me assim mesmo?

 

A moça lançou um olhar de indignação ao rapaz.

 

— Não me respondes? perguntou este.

 

— Com o desprezo, era a única resposta que merecias! exclamou Lucinda.

 

Esta indignação da namorada foi um bálsamo suave lançado no coração do moço. Era muito melhor do que um sorriso ou um levantar de ombros, ou qualquer outra coisa menos expressiva.

 

— Perdoas-me? disse ele.

 

— Não!

 

— Mas não ficas querendo mal?

 

— Talvez!

 

— Não digas isso! Reconheço que sou culpado mas a intenção das minhas palavras era a mais pura e inocente!

 

Lucinda acreditou piamente na pureza da intenção do rapaz e a conversa encaminhou-se para assuntos menos ásperos, em que por enquanto os deixaremos para ir ver em que se ocupa a senhora D. Mônica durante a longa ausência de Gaspar.

 

D. Mônica contou com extrema atenção e tal ou qual saudade os dias da ausência do sobrinho. Não tardou a zangar-se com tamanho prazo, até que um dia ergueu-se da cama com a resolução de o mandar chamar. Nesse dia a camareira de D. Mônica pôs em atividade todos os seus talentos de ornamentista para reparar os ultrajes dos anos, e repor a boa senhora em condições menos desfavoráveis do que a pusera a natureza. Duas horas a espartilhar-se e a vestir-se. Ao cabo de todo esse tempo dispôs o ânimo para receber o esquivo sobrinha a quem escrevera logo de manhã.

 

Todo esse trabalho, porém, foi inútil porque o mencionado sobrinho não apareceu, e D. Mônica teve de contentar-se com as despesas da toilette.

 

A esquivança do sobrinho pareceu-lhe de algum modo ofensiva, duplamente ofensiva, porque o era à sua pessoa como tia e como mulher. Como mulher é que ela sentiu mais. Ao mesmo tempo refletiu no caso, e hesitou em crer que o rapaz, sem forte motivo, se dispusesse a perder nada menos que uma gorda aposentadoria.

 

— Alguma coisa há de haver por força, dizia ela mordendo o lábio com despeito.

 

E a idéia de um namoro foi a primeira que lhe acudiu ao espírito como a mais natural de todas as explicações.

 

— É isso, algum namorico, sabe Deus com que lambisgóia! Sacrifica-se por ela, sem saber o que lhe resultará de semelhante passo. Pois que se avenham...

 

A reticência que aí fica não é minha, foi uma reticência nervosa que acometeu a pobre senhora, em forma de tosse, interrompendo o monólogo, a que deu fim a mucama trazendo-lhe a bandejinha de chá. D. Mônica tomou dois ou três goles dele e deitou-se daí a alguns minutos. O sono não veio prontamente, mas veio, enfim, cheio de sonhos cor-de-rosa em que D. Mônica viu realizados todos os seus desejos.

 

No dia seguinte os bons dias que recebeu foi uma carta de Gaspar. Dizia-lhe ele, respeitosamente, que era obrigado a renunciar à honra imposta por seu tio e à herança que lhe advinha dela, visto ter uma afeição anterior ao testamento do capitão Matias, afeição séria e decisiva. Consultaria, entretanto, um advogado para liquidar o ponto e saber se a tia podia ser defraudada de alguma parte da herança, coisa que ele evitaria por todos os meios possíveis. A carta era singela, nobre e desinteressada; por isso mesmo o desespero de D. Mônica foi aos últimos limites.

 

Gaspar não remeteu aquela carta sem consultar o seu amigo Veloso, que a ouviu ler e aprovou com restrições. A carta seguiu seu destino, e Gaspar interrogou o bacharel sobre o que achava ele que dizer ao desengano contido na epístola.

 

— Acho que o desengano é franco demais. Não é bem isto que eu quero dizer. Acho que não deixas nenhum caminho para voltar atrás.

 

— Voltar atrás? perguntou Gaspar admirado.

 

— Sim.

 

— Mas por quê?

 

— Porque não se despedem tão levianamente trezentos contos. Amanhã podes pensar de modo inteiramente diverso do que pensas hoje...

 

— Nunca!

 

— Nada de afirmações temerárias.

 

Gaspar levantou os ombros e fez um gesto de tédio, a que Veloso respondeu sorrindo. Gaspar lembrou-lhe que, logo que fora aberto o testamento e conhecidas as disposições de seu tio, Veloso lhe aprovara a resolução de não aceitar o casamento imposto.

 

— É verdade, retorquiu este; mas, se é bonito o ato, não impede que absolutamente o devas praticar, nem que seja prova de juízo seguro.

 

— Nesse caso, parece-te...

 

— Que não cedes a considerações de dinheiro, o que é prova de honestidade; mas que não há remédio se não ceder alguma vez a elas, o que é prova de reflexão. A mocidade passa e as apólices ficam.

 

Gaspar engoliu um discurso que lhe veio à ponta da língua, discurso de indignação, todo inspirado por seus brios ofendidos; limitou-se a dizer que no dia seguinte ia pedir a mão de Lucinda e que se casaria no mais breve prazo. Veloso deu-lhe os parabéns, e Gaspar foi dali redigir a carta de pedido ao comendador.

 

A carta de Gaspar não chegou à notícia do narrador do caso; mas há motivos para crer que era obra acabada como simplicidade de expressão e nobreza de pensamento. A carta foi enviada no dia seguinte; Gaspar aguardou a resposta com a ansiedade que o leitor pode imaginar.

 

A resposta não veio imediatamente como ele cuidava que seria. Esta demora fê-lo curtir dores cruéis. Escreveu um bilhete à namorada que lhe respondeu com três ou quatro monossílabos tétricos e misteriosos. Gaspar assustado correu à casa do comendador, e achou-a triste, abatida e reservada. Quis indagar o que havia, mas não teve ocasião.

 

A razão da tristeza de Lucinda foi a repreensão que o comendador lhe passou, ao ler o pedido do rapaz.

 

— Autorizaste semelhante carta? perguntou o comendador fuzilando-lhe os olhos de cólera.

 

— Papai...

 

— Responde!

 

— Eu...

 

— Eu quê?

 

— Não sei...

 

— Sei eu, troou o comendador Lima indignado; sei que não tiveste força bastante para desanimar o pretendente. Casar! Não é demais senão casar! Com que havia ele de sustentar casa? Provavelmente com o que esperava receber de mim? De maneira que eu ajuntei para que um peralvilho, que não tem onde cair morto, venha desfrutar o que me custou a haver?

 

Lucinda sentiu duas lágrimas borbulharem-lhe nos olhos e fez menção de retirar-se. O pai reteve-a para lhe dizer em termos menos desabridos que ele não desaprovava nenhuma afeição que ela tivesse, mas que a vida não se compunha só de afeições, senão de interesses também e necessidades de toda a espécie.

 

— Esse tal Gaspar não é mau rapaz, concluiu o comendador, mas não tem posição digna de ti, nem futuro. Por ora tudo são flores; as flores passam depressa; e quando tu quiseres um vestido novo ou uma jóia, não hás de mandar à modista ou ao joalheiro um pedaço do coração de teu marido. São verdades que deves ter gravadas no espírito, em vez de te guiares somente por fantasias e sonhos. Ouviste?

 

Lucinda não respondeu.

 

— Ouviste? repetiu o comendador.

 

— Ouvi.

 

— Não basta ouvir, é necessário digerir, disse sentenciosamente o pai.

 

E com este aforisma concluiu o diálogo — direi antes o monólogo, deixando na alma de Lucinda poucas esperanças de casamento, ao menos imediato como ela supunha e desejava que fosse. Tal é a explicação da tristeza e reserva com que recebeu o rapaz naquela noite. Facilmente se crê que Gaspar não saísse dali com a cara alegre. Nem acharei entre os leitores nenhum tão incrédulo que duvide de que o pobre namorado ficou tão fora de si, que não atinou com a maneira de abrir a porta, e afinal quebrou a chave, pelo que achou-se no meio da rua, à uma hora da noite, sem ter onde ir dormir.

 

Sem casa nem esperanças, é suplício excessivo. Gaspar teve idéia de ir ter com Veloso e passar a noite com ele, derramando no seio do amigo todas as suas queixas, e tristezas. Só ao cabo de cinco minutos é que se lembrou de que o bacharel morava no Pedregulho. Consultou a algibeira cuja resposta foi a mais desanimadora possível.

 

Nestas circunstâncias ocorreu-lhe a melhor solução que podia ter naquela crise: ir pedir pousada a D. Mônica. Ela morava na rua dos Inválidos e ele achava-se na rua do Conde. Embicou para lá, tão cheio de suas mágoas, que nem lhe lembravam as que podia ter causado à tia.

 

Ali chegando, foi-lhe facilmente aberta a porta. Um escravo dormia no corredor, e não teve dúvida em franquear-lhe a entrada desde que reconheceu a voz de Gaspar. Este contou ao escravo o que lhe acontecera.

 

— A vista disto, concluiu ele, arranja-me aí um lugar com que passe a noite, mas sem acordar titia.

 

D. Mônica tinha dois quartos trastejados para hóspedes; Gaspar foi acomodado em um deles.

 

 

V

 

A dona da casa ficou estupefacta no dia seguinte quando lhe deram conta do ocorrido. Em quaisquer outras circunstâncias, o caso lhe pareceria natural. Naquelas afigurou-se-lhe extraordinário. Ao mesmo tempo ficou singularmente satisfeita.

 

— Não o deixes sair sem almoçar, disse ela ao escravo.

 

A ordem foi cumprida; e Gaspar viu-se obrigado a faltar à repartição porque D. Mônica que almoçava cedo, determinou que naquele dia se alterasse o costume. Não me atrevo a dizer que o fim da boa senhora fosse aquilo mesmo, mas tinha ares disso. Verdade seja que a demora podia explicar-se pela necessidade que ela tinha de vestir-se e toucar-se convenientemente.

 

— Oh! não preciso de explicações, disse ela quando à mesa do almoço Gaspar quis explicar-lhe a razão do incômodo que viera dar-lhe. Vieste, é quanto basta; sempre que vieres tens aqui casa e corações amigos.

 

Gaspar agradeceu e almoçou. Almoçou triste e preocupado. Não reparou nas atenções da tia, no tom carinhoso com que ela lhe falava, na ternura que havia nos seus olhos; não reparou em nada. D. Mônica, pelo contrário, reparou em tudo; viu que o sobrinho não estava senhor de si.

 

— Hás de me contar o que tens, disse ela quando ficaram sós os dois.

 

— Não tenho nada.

 

— Não me iludas!

 

— Nada tenho... passei a noite mal.

 

D. Mônica não acreditou, mas não insistiu. O sobrinho, entretanto, sentia necessidade de desabafar com alguém; e não tardou em expor tudo à velha parenta, que o ouviu com religiosa atenção.

 

— Não me admira nada disso, observou ela quando ele acabou a narração; é naturalíssimo.

 

— Alguma traição?

 

— Podia ser; mas não é necessário suspeitar traição para explicar a mudança dessa moça.

 

— Parece-lhe...

 

— Parece-me que ela amava um herdeiro, e que...

 

— Oh! impossível!

 

— Por que impossível?

 

— Se eu lhe digo que a achei triste e abatida! O pai, sim, é possível que o pai se oponha...

 

— Também creio.

 

— Mas a vontade do pai...

 

— A vontade do pai há de vencer a da filha; seus conselhos a persuadirão... disse D. Mônica sorrindo. Que admira? É o que acontece com moças que sonham no casamento um perpétuo baile.

 

Gaspar ouviu cabisbaixo e triste o que lhe dizia a velha parenta. Seu coração batia com força, à medida que o espírito ia admitindo a plausibilidade da opinião de D. Mônica. Ao mesmo tempo surgiam-lhe na memória as provas de afeto que Lucinda sempre lhe dera, o desinteresse manifestado mais de uma vez, e, enfim, a indignação com que ainda recentemente lhe respondera a uma insinuação acerca da herança.

 

D. Mônica, pela sua parte, mostrava os inconvenientes em certa ordem de casamentos comparados com outros, menos românticos mas muito mais sólidos. Gaspar não ouviu, ou ouviu mal, a preleção da tia. Tinha perdido a repartição: saiu para ir rondar à porta da namorada.

 

Na primeira ocasião em que pôde falar a sós com ele (foi daí a dois dias), Lucinda referiu-lhe o discurso e os conselhos do pai, e pediu-lhe que tivesse paciência e esperasse. Gaspar jurou por todos os santos do céu que esperaria até a consumação dos séculos. A moça podia responder que provavelmente nessa época não estaria em idade de casar, não lhe acudiu porém a resposta e continuou a lastimar-se com ele do despotismo dos pais e das exigências sociais.

 

Gaspar saiu dali disposto "a fazer uma estralada". Vagou longo tempo nas ruas sem assentar em coisa alguma, até que foi acabar a noite no primeiro teatro que achou aberto. Na peça que se representava havia um namorado em condições iguais às dele que acabava matando-se. Gaspar achou que a solução era violenta demais.

 

— Oh! eu morrerei por mim mesmo! exclamou ele saindo do espetáculo.

 

Talvez julgasse que entre a vida e a morte havia lugar para um bife de grelha, porque o foi comer em um hotel próximo. A ceia diminuiu-lhe o horror da situação; Gaspar dormiu tranqüilo a noite inteira.

 

No dia seguinte acordou tarde; e faltou à repartição, como usava fazer algumas vezes, e seu espírito, mais que nunca, era avesso ao expediente. Lembrou-se de ir dar um passeio a Niterói para distrair-se. Embarcou e recolheu-se todo em si, olhando para o mar e o céu. Pouca gente havia perto; ainda assim, e por mais absorto que ele estivesse, não pôde obstar que lhe chegasse aos ouvidos o seguinte pedaço de conversa entre dois sujeitos desconhecidos.

 

— É o que lhe digo, não caio nessa.

 

— Mas por quê?

 

— Porque não tenho certeza de ganhar um conto de réis e arrisco-me a perder dez ou doze.

 

— Não creio...

 

— É arriscadíssimo!

 

— Você é um medroso.

 

— Medroso, não; prudente. Prudente como quem lhe custou a arranjar um peculiozinho.

 

— Peculiozinho? Maganão! confesse que você tem aí os seus cem contecos...

 

— Por aí, por aí...

 

Gaspar suspirou e olhou para o passageiro que dizia possuir cem contos. Era um homem de cerca de quarenta anos, vestido com asseio, mas sem apuro nem elegância. A barca chegava a S. Domingos; o interlocutor do homem desembarcou, enquanto o outro ficou para ir a Niterói. Logo que a barca tomou este caminho, Gaspar aproximou-se do desconhecido:

 

— Não me dirá — disse ele — como é que V.S. arranjou cem contos de réis?

 

O desconhecido olhou espantado para a pessoa que lhe fazia esta pergunta e ia responder-lhe descortesmente, quando Gaspar continuou nos termos seguintes:

 

— Espanta-se naturalmente do que lhe digo, e tem razão; mas a explicação é simples. V.S. vê em mim um candidato a cem contos de réis; ou a mais...

 

— Mais é melhor, tomou o desconhecido sorrindo.

 

— Bastam-me cem.

 

— Pois o segredo é simples.

 

— Qual é?

 

— Ganhá-los.

 

— Oh! isso!

 

— É difícil, bem sei; leva anos.

 

— Quantos anos levou o senhor?

 

— É muito curioso!

 

— Oh! se eu lhe contar a minha situação, compreenderia a singularidade da minha conversa.

 

O desconhecido nenhuma necessidade sentiu de saber a vida de Gaspar, e dirigiu a conversa para as vantagens que podem dar os bens da fortuna. Foi o mesmo que lançar lenha no fogo. Gaspar sentiu arder em si, cada vez mais, a ambição de possuir.

 

— Se eu lhe disser que posso ter trezentos contos de réis amanhã?

 

Os olhos do desconhecido faiscaram.

 

— Amanhã?

 

— Amanhã.

 

— Como?

 

— De um modo simples; casando.

 

Gaspar não recuou em suas confidências; referiu tudo ao desconhecido que o ouvia com religiosa atenção.

 

— E que faz o senhor que não casa?

 

— Porque amo a outra pessoa; uma criatura angélica...

 

O desconhecido olhou para Gaspar com tanta compaixão que este sentiu-se envergonhado — envergonhado, sem saber de quê.

 

— Bem sei, disse ele, que não há prudência nisto; mas o coração... O que eu queria era saber como se pudesse obter cem contos, para depois...

 

— Casar com a outra?

 

— Tal qual.

 

— Não sei. A barca está a chegar e nós vamos separar-nos. Deixe-me dar-lhe um conselho: case com sua tia.

 

— Uma velha!

 

— Trezentos contos.

 

— Amando a outra!

 

— Trezentos contos.

 

A barca chegou; o desconhecido despediu-se.

 

Gaspar ficou só, a refletir no infinito número de homens interesseiros que há no mundo. A barca voltou daí a pouco à cidade. Gaspar viu entrar entre os passageiros um homem ainda moço pelo braço de uma senhora idosa, que ele supôs ser sua mãe, mas que soube ser sua mulher quando o rapaz a apresentou a um amigo. Vestiam com luxo. O marido, tendo de tirar um cartão de visita da algibeira, mostrou uma carteira recheada de dinheiro.

 

Gaspar suspirou.

 

Chegando à cidade foi à casa da tia; D. Mônica achou-o ainda muito triste, e lhe disse.

 

— Vejo que amas loucamente essa moça. Queres casar com ela?.

 

— Titia...

 

— Farei o mais que posso; tentarei vencer o pai.

 

Gaspar ficou estupefato.

 

— Oh! disse ele consigo; eu sou indigno desta generosidade.

 

 

VI

 

O almoço no dia seguinte foi mais triste que de costume. Gaspar abriu os jornais para passar os olhos por eles; a primeira coisa que leu foi a sua demissão. Vociferou contra a prepotência do ministro, a cruel severidade dos usos burocráticos, a exigência descomunal do comparecimento na Secretaria.

 

— É indigno! exclamava ele, é infame!

 

Veloso, que entrou daí a pouco, não achou tão censurável o ato do ministro; teve até a franqueza de lhe declarar que não havia outra solução, e que o primeiro que o demitira fora ele mesmo.

 

Passada a primeira explosão, examinou Gaspar a situação em que o deixava o ato ministerial, e compreendeu (o que não era difícil) que o casamento com Lucinda era cada vez mais problemático. Veloso foi da mesma opinião, e concluiu que um único meio lhe restava: era casar com D. Mônica.

 

Gaspar foi nesse mesmo dia à casa de Lucinda. O desejo de a ver era forte; muito mais forte era a curiosidade de conhecer de que maneira recebera ela a notícia da sua demissão. Achou-a um pouco triste, mas ainda mais fria que triste. Três vezes procurou estar a sós com ela, ou pelo menos falar-lhe sem que pudessem ouvi-los. A moça parecia esquivar-se aos desejos do rapaz.

 

— Será possível que ela despreze agora o meu amor? perguntava ele a si mesmo ao sair da casa da namorada.

 

Esta idéia irritou-o profundamente. Não sabendo que pensar daquilo, resolveu escrever-lhe, e nessa mesma noite redigiu uma carta em que expunha lealmente todas as dúvidas do seu coração.

 

Lucinda recebeu a carta no dia seguinte às 10 horas da manhã; leu-a, releu-a, e pensou muito antes de responder. Ia lançar as primeiras linhas da resposta, quando seu pai entrou na saleta onde ela se achava.

 

Lucinda escondeu à pressa o papel.

 

— Que é isso?

 

— Vamos lá; uma filha não pode ter segredos para seu pai. Aposto que é alguma carta de Gaspar? Pretendente demitido é realmente...

 

Lucinda dera-lhe a carta, que o pai abriu e leu.

 

— Tolices! disse ele. Dás-me licença?

 

Dizendo isto, rasgou a carta e aproximou-se da filha.

 

— Verás mais tarde, que eu sou mais teu amigo do que pareço.

 

— Perdão, papai, disse a moça; eu ia responder que não pensasse mais em mim.

 

— Ah!

 

— Não foi o seu conselho?

 

O pai refletiu algum tempo.

 

— A resposta era decerto boa, observou ele; mas a melhor resposta é nenhuma. Em ele desenganando por si mesmo, não insiste mais...

 

Tal é a explicação da falta de resposta à carta de Gaspar. O pobre namorado esperou dois dias, até que desenganado foi à casa do comendador. A família tinha ido passar alguns dias fora da cidade.

 

— A sorte persegue-me! exclamou furioso o sobrinho do finado capitão. Um de nós há de vencer!

 

Para matar a tristeza e ajudar o duelo com o destino, procurou fumar um charuto; meteu a mão na algibeira e não achou nenhum. A carteira apresentava a mesma solidão. Gaspar deixou cair os braços com desânimo.

 

Nunca mais negra e viva se lhe apresentara ante os olhos a sua situação. Sem emprego, sem dinheiro, sem namorada e sem esperanças, tudo era perdido para ele. O pior é que sentia-se incapaz de domar o destino, apesar do desafio que lhe arremessara pouco antes. Pela primeira vez a idéia dos trezentos contos do tio lhe reluziu ao longo como uma plausibilidade. A visão era deliciosa, mas o único ponto negro apareceu logo dentro de um carro que parou a poucos passos dele. Dentro do carro ia D. Mônica; ele viu-a inclinar-se pela portinhola e chamá-lo.

 

Acudiu como bom sobrinho que era.

 

— Que fazes ai?

 

— Ia para casa.

 

— Anda jantar comigo.

 

Gaspar não podia trocar uma realidade por uma hipótese, e aceitou o conselho da tia.

 

Entrou no carro. O carro partiu.

 

Seria ilusão ou realidade? D. Mônica pareceu-lhe nessa ocasião menos velha do que antes a achava. Ou fosse da toilette, ou de seus olhos, a verdade é que Gaspar viu-se obrigado a reformar um pouco o juízo anterior. Não a achou moça; mas a velhice pareceu-lhe mais fresca, a conversa mais agradável, o sorriso mais meigo e o olhar menos apagado.

 

Estas boas impressões foram bom tempero ao jantar, que aliás era excelente. D. Mônica mostrava-se, como sempre, carinhosa e boa; Gaspar demorou-se ali até perto das dez horas da noite.

 

Voltando à casa, refletiu que, se porventura pudesse casar com outra pessoa que não fosse Lucinda, casaria com D. Mônica, sem nenhum pesar nem arrependimento.

 

— Não é moça, pensou ele, mas é boa e são trezentos contos.

 

Trezentos contos! Este algarismo perturbou o sono do rapaz. Primeiramente custou-lhe a dormir; ele via trezentos contos em cima do travesseiro, no teto, nos portais; via-os transformados em lençóis, em cortinados, em cachimbo turco. Quando conseguiu dormir, não conseguiu livrar-se dos trezentos contos. Sonhou com eles a noite inteira; sonhou que os comia, que os cavalgava, que os dançava, que os aspirava, que os gozava, em suma, por todos os modos possíveis e impossíveis.

 

Acordou e reconheceu que tudo fora sonho.

 

Suspirou.

 

— E tudo isto sacrifico eu por causa dela! exclamou ele. Merece-lo-á? Merecerá que eu padeça tantas privações, que abra mão de um bom casamento para ser desprezado deste modo?

 

Não lhe respondendo ninguém a esta pergunta, fê-lo ele próprio, e a resposta foi que a moça não merecia tamanho sacrifício.

 

— Contudo, sacrificar-me-ei! concluiu ele.

 

Neste ponto das reflexões recebeu uma carta da tia:

 

Gaspar.

 

Creio que arranjo empenho para que se te dê algum lugar muito breve, em outra secretaria.

Gaspar estremeceu de prazer.

 

— Boa tia! disse ele. Ah! como lhe tenho pago com ingratidões!

 

A necessidade de agradecer e a conveniência de não aumentar a conta no hotel foram as duas razões que levaram o ex-empregado a ir almoçar com a tia. D. Mônica recebeu-o com o carinho do costume, disse-lhe o que pretendia fazer para empregá-lo de novo e deixou-o nadando em reconhecimento.

 

— Ah! minha tia! Quanto lhe devo!

 

— Nada me deves, respondeu D. Mônica, só me deves amizade.

 

— Oh! a maior! a mais profunda! a mais santa!

 

D. Mônica louvou os sentimentos do sobrinho e prometeu fazer por ele tudo o que fosse possível fazer por... por um neto, é o que ela devia dizer: mas ficou na vaga expressão — por uma pessoa cara.

 

A situação entrou a parecer melhor ao herdeiro do capitão. Não só via possibilidade de um novo emprego, mas até seria este logo depois da demissão, o que de algum modo lhe reparava o mal feito aos seus créditos de funcionário laborioso e pontual. Além disso D. Mônica fê-lo prometer que não iria comer a outra parte.

 

— Terás sempre um talher à minha mesa, disse ela.

 

Gaspar escreveu ainda duas cartas a Lucinda; mas ou elas lhe não chegaram às mãos, ou a moça definitivamente não queria responder. O namorado aceitou a princípio a primeira hipótese; Veloso fê-lo acreditar na segunda.

 

— Tens razão, talvez...

 

— Sem dúvida.

 

— Mas custa-me a crer...

 

— Oh! é a coisa mais natural do mundo!

 

A idéia de que Lucinda o tivesse esquecido, desde que lhe faltara o emprego era difícil de que a admitisse; mas afinal enraizou-se-lhe a suspeita.

 

— Se tais fossem os sentimentos dela! exclamava ele consigo.

 

A presença da tia fê-lo esquecer tão tristes idéias; eram horas de jantar. Gaspar sentou-se à mesa desembaraçado das preocupações amorosas. Preocupações de melhor catadura vieram sentar-se-lhe no espírito: os eternos trezentos contos recomeçaram a sua odisséia na imaginação dele. Gaspar construiu ali mesmo uma casa elegante, mobiliou-a com luxo, comprou um carro, dois carros, contratou um feitor para lhe cuidar da chácara, deu dois bailes, foi à Europa. Chegaram estes sonhos até a sobremesa. Acabado o jantar, viu ele que tinha apenas a demissão e uma promessa.

 

— Na verdade, sou um pedaço de asno! exclamou ele. Pois tenho a fortuna nas mãos e hesito?

 

D. Mônica levantara-se da mesa; Gaspar foi ter com ela.

 

— Sabe de uma coisa em que estou pensando? perguntou.

 

— Em matares-te.

 

— Em viver.

 

— Pois vive.

 

— Mas viver feliz.

 

— Já sei como.

 

— Talvez não saiba dos meus desejos. Eu, titia...

 

Ia ser mais franco. Mas depois de encarar o abismo, quase a cair nele, recuou. Era mais difícil do que lhe parecia, aquilo de receber trezentos contos. A tia, porém, compreendeu que o sobrinho voltava a adorar o que havia queimado. Não tinham outro fim todos os seus desvelos.

 

Gaspar adiou a declaração mais explícita e sem que com isto perdesse a tia, porque os vínculos se foram apertando a mais e mais, e os trezentos contos de todo se sentaram na alma do moço. Estes aliados de D. Mônica derrotaram completamente o adversário. Nem tardou que ele comunicasse a idéia a Veloso.

 

— Tinhas razão, disse ele; devo casar com minha tia e estou disposto a fazê-lo.

 

— Ainda bem!

 

— Devo satisfazer o desejo de um morto, sempre respeitável e enfim corresponder aos desvelos com que ela me trata.

 

— Perfeitamente. Já lhe falaste?

 

— Não; falarei amanhã.

 

— Ânimo.

 

Na noite desse dia recebeu Gaspar uma carta de Lucinda, em que ela lhe dizia que o pai, vendo-a triste e abatida, e sabendo que era por amor dele, cedera da sua oposição e consentia em que eles fossem unidos.

 

— Que cara é essa tão espantada? perguntou Veloso, que estava presente.

 

— A coisa é para espantar. O comendador cedeu...

 

— O pai de Lucinda?

 

— É verdade!

 

— Essa agora!

 

— Lê.

 

Veloso leu a carta de Lucinda.

 

— Na verdade, o lance era inesperado. Pobre moça! Vê-se que escreve com a alma banhada em alegria!

 

— Parece que sim. Que devo fazer?

 

— Oh! neste caso, a situação é diferente do que era há pouco; os obstáculos da parte oposta caíram por si mesmos.

 

— Mas será de boa vontade que o comendador cede?

 

— Isso importa pouco.

 

— Receio que seja um laço.

 

— Laço? Ora essa! exclamou Veloso sorrindo. O mais que podia ser era negar o dote à filha. Mas sempre tens esperança da parte que lhe tocar por morte do pai. Quantos filhos tem ele?

 

— Cinco.

 

— Uns cinqüenta contos a cada um.

 

— Então, parece-te que devo...

 

— Sem dúvida.

 

Veloso saiu; Gaspar ficou meditando na situação. Poupo à leitora a exposição das longas e complicadas reflexões que ele fez, bastando dizer que no dia seguinte ainda a questão estava neste pé:

 

— Devo eu desobedecer a voz de um morto? Trair a esperança de uma senhora que me estima, que me estremece?

 

Vinte e quatro horas depois estava enfim resolvida a questão. Gaspar declarou a D. Mônica que estava disposto a casar com ela, se consentisse em dar-lhe esse prazer. A boa senhora não tinha outro desejo; contudo, foi fiel à máxima do sexo; fez-se um tanto rogada.

 

— Resolvi! disse Gaspar a Veloso logo que o encontrou depois disso.

 

— Ah!

 

— Caso-me.

 

— Com a Lucinda?

 

— Com minha tia.

 

Veloso recuou dois passos e esteve calado alguns instantes.

 

— Admiras-te?

 

— Admiro-te. Afinal os trezentos contos...

 

— Ah! não! Obedeço à vontade de meu tio, e não posso corresponder com ingratidão aos desvelos de uma senhora que me estima. Será isto poesia, talvez; talvez me acusarás de romanesco; mas eu penso que sou simplesmente honrado e leal.

 

Veloso foi convidado para servir de padrinho do casamento. Aceitou o encargo; é amigo da família; e consta que deve a Gaspar uns três ou quatro contos de empréstimo. Lucinda chorou durante dois dias, ficou raivosa outros dois; no quinto encetou um namoro, que acabou pelo casamento daí a quatro meses. Não era melhor que todos eles começassem por aí? Poupavam a si próprios alguns desgostos, e a mim o trabalho de lhes contar o caso.

 

 

 

FIM

 

 

 

 

abril, 2008