Roberta Gualda entre Daniel Zettel e JefFerson Brasil em cena de POLARÓIDES URBANAS
 
 
 
 
 
 

 

 

"A felicidade (eudaimonia) é concebida

pelos  gregos como  intimamente ligada

a uma rede de ações responsáveis que

garantem a boa convivência".

 

(Kathrin  Holzermayr  Rosenfield,

comentário ao segundo estásimo

de Antígona, de Sófocles1)

 

 

A rica textura polifônica e plurissignificante de POLARÓIDES URBANAS (Urban Snapshot, 2007, 96 min.) — estréia do ator e dramaturgo Miguel Falabella na direção cinematográfica — oferece, desde os primeiros instantes, uma seqüência de situações e desdobramentos em que as personagens, em breves slices of life, entrecortam e esculpem várias faces de uma mesma paisagem: desalento, intolerância, rejeição, desesperança, incomunicabilidade, solidão, marcas da difícil sobrevivência nos grandes centros urbanos2. À moda de uma suíte, os protagonistas são apresentados em compassos, cada qual enunciando um tema, cujo desenvolvimento enseja, necessariamente, múltiplas conexões estruturais e funcionais.

Como um intróito de feição metalingüística, a primeira seqüência inicia-se no interior do camarim da veterana atriz Lise Delamare (Arlete Salles), que, minutos antes de entrar no palco para encenar a tragédia "Antígona", de Sófocles, hesita até que, dado o terceiro sinal, inicia o espetáculo. Uma crise de pânico, contudo, suplanta os esforços de Lise e ela esquece as falas do Prólogo, irritando os companheiros de cena, em especial a intérprete de Ismênia (Alessandra Maestrini) e, aos gritos, interrompe o espetáculo, passando a expor ao público sua própria tragédia pessoal.

O espanto e as interjeições da platéia sublinham e fotografam a cena, com alta dosagem de humor. Numa das poltronas, a dona-de-casa Magali (Marília Pêra) comenta, entredentes, que não costuma ir ao teatro e, que justamente quando resolve fazê-lo, acontece de não ter espetáculo e a estrela acaba protagonizando um escândalo real. Quando a atriz a aponta e lhe indaga o porquê de ter ido ao teatro naquela noite, Magali responde, de modo simplório, que decidira assistir a uma tragédia grega para ver se passaria a achar graça em sua própria vida. Depois da resposta, que remete à questão da catarse, tema basilar nas artes cênicas, Magali se aproxima de Lise e lhe diz que, na verdade, a conhece de vista, uma vez que ambas freqüentam o consultório da mesma psicoterapeuta, a Dra. Paula Montevecchio (Natália do Vale).

O tom de desalento dos simplórios comentários da espectadora Magali e o desespero da atriz Lise Delamare no palco, incapaz de representar sua personagem, tangenciam-se de modo inusitado e, do aparente paradoxo entre a simplicidade e o anonimato de uma e os gritos e arroubos da outra, surge o matiz tragicômico que sela a primeira polaróide.

Outra seqüência, iniciada no interior do consultório da respeitada psicoterapeuta (Natália do Vale), mostra a saída de Lise de uma consulta e a entrada de Magali, na sessão seguinte. A fala de Magali é recheada por perguntas não pertinentes e uma série de queixas banais, relacionadas ao comportamento autoritário e mesquinho do marido, às extravagâncias e indiferença de sua irmã gêmea, a fútil Magda, e à sua própria falta de horizontes, diante do cotidiano tedioso que a aprisiona. A seus relatos se contrapõem o desinteresse e o ar de enfado da psicóloga, Dra. Paula, que, depois de encerrada a consulta, recebe um telefonema da filha, Melanie (sugestivo nome para a filha de uma psicoterapeuta), interpretada pela excelente Roberta Gualda. Em suas múltiplas carências e complexos, verdadeiras crateras de afeto, a deprimida jovem ameaça desaparecer, o que impele a psicóloga a deixar o consultório e seguir imediatamente para casa.

Àquela altura, Lise, que saíra há algum tempo do consultório, já fora perseguida por fãs com invasivas câmaras fotográficas, refugiara-se numa joalheria, e tentava apanhar um táxi. Neste ponto, Paula desce e as duas se engalfinham na disputa de um táxi. Um instantâneo fotográfico bem característico dos grandes centros urbanos. Inexiste comunicação entre elas; só há disputa. Em seu comportamento ortodoxo, a psicoterapeuta entende que, terminado o horário de consulta, sua paciente é apenas uma estranha, a quem não deve nenhuma atenção especial e a quem não fará qualquer concessão ou gentileza. Por isso, não escuta seus reclamos. Por outro lado, o rigor de sua postura impede que esclareça a razão da pressa; portanto, Lise desconhece o drama de Paula com a filha — que chegará a tentar o suicídio — e se sente maltratada.

Outros dramas se apresentam na tela. Melanie, que acredita só ter sido amada pela governanta e sua ama de leite, Crioula (Neusa Borges), saiu de casa, depois de ter arrombado o armário da mãe e se apossado de caixas de comprimidos. Colega de Melanie na academia, outra jovem personagem, Vanessa (Juliana Baroni) atravessa dramas bem diferentes. Entediada a cultivar a própria beleza e sensualidade, Vanessa esnoba os namorados que por ela se apaixonam — Mike (Nicolas Trevijano), um garoto de programa, e Arnaldo (Alexandre Slaviero), filho de Magali — e está sempre buscando companhias de posição social mais elevada, atrás de oportunidades para se tornar famosa, uma celebridade, talvez uma atriz — como falsamente se apresentará à Dulce (Stella Miranda), numa confeitaria, no fim do dia, no auge do vazio existencial, faminta e sem dinheiro sequer para comprar um doce.

Dulce é voluntária num centro de atendimento a possíveis suicidas e, neste mister, atende telefonemas de Melanie — que consegue socorrer e salvar — e de Mike, cujos dramas ouve e a quem aconselha. A filha adolescente de Dulce se suicidara e é Crioula quem a ouve narrar seu drama.

Entre os múltiplos quadros urbanos — instantâneos fotográficos colhidos na metrópole, a abordagem da violência e da criminalidade também se faz presente, nos assaltos praticados pela mesma dupla de infratores, Sangria (Daniel Zettel) e Macaco (Jefferson Brasil), um deles contra a atriz Lise Delamare e o outro, contra Melanie.           

Na extrema linha do humor, Magda e Adalberto (Marília Pêra e Marcos Caruso) vivem aventuras em sua viagem de turismo à Europa, desfilando clichês e futilidades, chegando a ser confundidos com perigosos terroristas procurados pela polícia.

Habilmente construída, a comédia dramática de Falabella utiliza com equilíbrio os principais elementos de cada um dos gêneros componentes da mescla. O roteiro — premiado em 2007 no 11º Brazilian Film Festival, de Miami3, tem a assinatura do próprio diretor e foi concebido e desenvolvido a partir de uma bem sucedida peça teatral de sua autoria, "Como encher um biquíni selvagem", em que a atriz Cláudia Jimenez dava vida à onze personagens, concomitantemente.

A transmutação da obra teatral para a linguagem fílmica realizou-se com competência. A inteligente a escolha do elenco é outro grande trunfo de POLARÓIDES URBANAS. Marília Pêra, Arlete Salles, Natália do Vale, Otávio Augusto e Marcos Caruso estão nos principais papéis. Completam o cast Roberta Gualda, Juliana Baroni, Neusa Borges, Stella Miranda, Nicolas Trevijano, Alexandre Slaviero, Daniel Zettel, Alessandra Maestrini, Marcelo Adnet, Jefferson Brasil, Sandro Cristopher, Andréa Dias, Gisela Mattoso, Guida Vianna, entre outros. E ainda há luxuosas participações especiais de Jacqueline Laurence, Berta Loran e Ingrid Guimarães. O talento dos atores é responsável por interpretações singularíssimas e cenas memoráveis — como, por exemplo, os diálogos do casal Magali e Edmundo (Marília Pêra e Otávio Augusto).

As dificuldades e os conflitos de Magali, Lise, Paula, Melanie, Vanessa e Mike, compõem um espelho no qual também figuram outras personagens. Uma bem urdida teia de reflexos e entrelaçamentos, embora pontilhada com o humor característico do roteirista e diretor Miguel Falabella, mostra-se bastante eficiente ao comover o espectador, e, ao mesmo tempo, convidá-lo e instigá-lo à reflexão. Aliás, é nesta conjugação que reside um dos maiores méritos do filme.

Como ensina Jean-Claude Carriére4:

 

"Escrever um roteiro é muito mais do que escrever. Em todo caso, é escrever de outro modo: com olhares e silêncios, com movimentos e imobilidades, com conjuntos incrivelmente complexos de imagens e de sons que pode estabelecer mil relações entre si, que podem surpreender a inteligência ou atingir o inconsciente, que se superpõem, que se entrelaçam, que às vezes até se repelem, que fazem surgir coisas invisíveis". (Prática do roteiro cinematográfico).

 

As necessidades dramáticas de todas as personagens intensificam-se, adensam-se, no caleidoscópio desenhado por Falabella, e se unificam, num plano de ressonâncias, em que a escuta ensejará a possibilidade de redenção. Renée (Jacqueline Laurence), assessora da atriz Lise Delamare, embora inábil e tensa, é quem a escuta. Melanie não é ouvida por ninguém senão por Crioula. Mike expõe seu drama a Dulce, mas é Magali quem o ouve com total atenção, numa oportunidade inesperada.

O contraponto existente entre as duplas Magali/Magda, Lise/Magali, Mike/Arnaldo, Paula/Crioula, Paula/Dulce, Melanie/Vanessa, Edmundo/Adalberto e Vanessa/Lise é sublinhado por meio do humor, que auxilia a compreensão dos traços que o roteirista desejou evidenciar em cada personagem. São díades que vão se delineando desde o início do filme, caminhando para o ápice máximo em que Melanie tenta o suicídio, ingerindo enorme quantidade de comprimidos. A ação de Dulce, que, depois de ouvi-la, por telefone, durante alguns minutos, consegue salvá-la, desencadeia a redenção de outras personagens.

É preciso destacar o excelente desempenho de todo o elenco, em que se destacam as impecáveis interpretações de Marília Pêra, em seu duplo papel das gêmeas Magali e Magda (Melhor Atriz no 11º Brazilian Film Festival, Miami, 2007), Arlete Salles, Otávio Augusto, Natália do Vale e Stella Miranda. Há que se registrar, ainda, a agilidade do roteiro e da montagem, realizada por Diana Vasconcelos.

Há um bem construído contraste entre as personagens, suas histórias e desejos, entre as pequenas tragédias do cotidiano, os traumas, as órbitas múltiplas e as situações-limite que se repetem. Contraponto e polifonia marcam a plêiade de paradoxos da sociedade contemporânea. O desejo de obter fama e sucesso a qualquer custo, protagonizado por Vanessa, e o desejo de submergir no anonimato e escapar à devassa da multidão, representado pela decadente atriz Lise, constituem um dos marcantes exemplos deste mosaico transurbano, em que as musas gregas Tália e Melpômene, representantes do riso e do choro, se aproximam e se unem, para significar a inteireza do ser e ambigüidade de sua alma.

Deve-se, ainda, registrar a beleza do plano aberto, na Lagoa, em que Melanie, após passar por entre os cisnes-pedalinhos enfileirados, com sua forte carga simbólica, abaixa-se e, ao ingerir os comprimidos, tem sua imagem refletida e completamente distorcida nas águas. E os momentos de solidariedade vivenciados pelas duplas Mike/Arnaldo e Dulce/Vanessa. Mike vê Arnaldo ser humilhado pela namorada, Vanessa, com a mesma frase com que fora ele próprio também dispensado. De adversários, Mike e Arnaldo passam a identificar-se e Mike ampara Arnaldo, completamente embriagado, em sua volta para casa. Em outra cena da parte final do filme, Dulce oferece à Vanessa um sonho, ao perceber que esta entrara na confeitaria sem dinheiro para pagar o doce. Quando ambas saem da confeitaria, a câmara as segue, sem pressa, quase "rallentando" e remete o espectador a uma conhecida imagem da filmografia felliniana: as sementes de otimismo de Guilieta Masina, em "Noites de Cabiria", renovadas, mesmo após uma série de provações e golpes da sorte. O olhar de compaixão de Dulce sela uma polaróide-resgate, espelho, insinuando que a solidariedade e a ternura ainda encontrarão eco, nalgum lugar, quando menos se esperar.

Excetuadas algumas cenas, como as que mencionamos acima, os planos, em geral, são fechados, com muitos closes, pois pretendem evidenciar a riqueza das interpretações de todo o elenco e realçar a graça e o frescor dos diálogos. Na fotografia do experiente Gustavo Hadba, há cores quase sempre intensas; excetuados momentos peculiares em que os tons escuros predominam — as seqüências na casa da psicoterapeuta Paula (nos quartos e nas salas) e a cena inicial no camarim de Lise. São os momentos em que o filme focaliza mais de perto as questões patológicas. E a trilha sonora de Guto Graça Mello consegue alternar o tom solene da ópera A força do destino, de Giuseppe Verdi — que abre o filme — e o matiz de contemporaneidade e cotidiano presentes na canção "Vidas inteiras", de Adriana Calcanhoto. O contraste serve ao caráter agridoce ou tragicômico de Polaróides Urbanas e é bastante explorado.

O chamado filme-coral, em que uma pluralidade de personagens desenvolve histórias paralelas e/ou tangentes — que se  tocam por algum ponto comum — tem estado cada vez mais presente na cinematografia contemporânea. Babel (EUA/México, 2006, Alejandro González Iñárritu), Crash (EUA, 2005, Paul Haggis) e o recém-lançado "O Signo da Cidade" (Brasil, 2007, Carlos Alberto Ricelli) são bons exemplos destes mosaicos.

O filme de Falabella também alude às chamadas "cidades-pânico", referidas por Paul Virilio e com percuciência lembradas por Olgária Matos5 em seu ensaio a propósito de "Crash". Trafegam em áreas de lodo e medo curvas de coragem e boa vontade, afeto, solidariedade, permeando ondas de intolerância, indiferença, surtos e patologias comuns às grandes cidades.

Para a multiplicidade de espantos e linhas transversas de POLARÓIDES URBANAS, fibras de uma tênue luz de comunicabilidade atraem visceralmente suas híbridas personagens. Para o fio narrativo que as conduz, em tempo de entrelinhas e possíveis ressonâncias, há o sopro redentor da invenção e da ambigüidade, da plurissignificação e do humor, entre olhares delicados e lentes de cristal.

 

 

 

Notas

 

 

março, 2008

 

 

 

 

 

Beatriz Amaral. Mestre em Literatura e Crítica Literária, musicista e escritora, publicou nove livros, entre os quais Planagem (1998), Alquimia dos Círculos (2003), Luas de Júpiter (2007).
 
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