ou como um simples poema tornou-se

poema-novela para justificar a possibilidade

de o discurso fazer-se narrativa num contexto

de fragmentação e sutura, dialógico e...

 

 

"Se o poeta consegue inventar uma fábula,

não tem o direito de saber qual é a sua moral".

Jorge Luis Borges

 

 

Você terá muito medo de virar a página, "hipócrita leitor". Sentirá tamanho terror que suas únicas opções serão a de fechar o livro, queimá-lo, tomar uma drágea de Letex (droga pró-esquecimento do Laboratório Goleman & Searle), ou desejar, sem sucesso, um retorno humilde e apavorado ao útero materno. Você, finalmente, entenderá porque Clarice Lispector escreveu — "nascer me estragou a saúde". A barata de Kafka, perto do que você conhecerá a seguir, será fichinha de máquina de enganar bobo, como as que outrora se permitia consumir para matar o que você tinha de mais precioso: o tempo. Depois de ler — fica a advertência — você não terá nem tempo para fugir de Langtônia, nem de si mesmo. Pense bem se valerá a pena prosseguir. Porque este texto foi escrito com os únicos objetivos de incomodá-lo, ou de fazê-lo resistir ao impacto do seu próprio pós-pensar. Não haverá meio termo, neutralidade, recuo. Preparado? Avance.

Em homenagem a Christopher Langton, responsável pelo estabelecimento da vida artificial, o biólogo Thomas Ray, um puta computer-man autodidata, criou e implantou o sistema Tierra próximo a Santa Fé, meca da biologia sintética e da primeira reserva de biodiversidade no ciberespaço. Isso, na remota segunda metade da década de 90. Ray tornou-se rei de Langtônia, esparramando, virtualmente, seus organismos digitais através da artificial life wordshop — Alife 2. Ele previu inclusive novas abordagens para robôs autônomos e para uma classe de novas técnicas computacionais de resolução de problemas baseadas nos mecanismos evolutivos geológicos. Até aqui, nenhum susto. É o futuro que fala. E, para você, ele poderá ser opcional. Ou seja: ou tudo, ou nada.

Como sempre ocorre em toda a História, o melhor está por vir. O que fascina é a sedução do desconhecido. A arqueologia do inusitado. Aventure-se. Coragem não lhe falta: afinal, você nasceu, vive, tem o limite da ultima ratio pela frente. Aproveite a oportunidade. Mesmo porque, adianta-lhe o filosoeta, o pior de tudo seria você não vir a ser escolhido para... sobreviver. Ou, ainda, mais pioral, você se tornar, a fortiori, um eterno imortal, uma espécie de membro da ABL cibernética, um herói, sem dúvida, mas um lukacsiano "herói problemático", incapaz de livrar-se de si mesmo.

Ao contrário, os organismos-heróis de Langtônia apenas suscitavam personalidades; eles surgiram da "impossibilidade de preencher o quadro ideológico para o qual deveriam ter sido feitos". Até que a idéia de Ray era poderosamente boa, plausível, sobretudo por não repetir jargões da sci-fi, ou recrudescer à anabiose criobiológica, aos "fermentos de conotações livres", na expressão de Baudoim Jurdant, abrindo caminho sem limites para o imaginário. Do passado, prevaleciam em Langtônia "as três leis da robótica", de Asimov. Nada, porém, de L'utopie et les utopies (1950), de um Raumond Ruyer introduzindo o conceito nietzschiano de fernstrenliebe — o "amor do longínquo e do futuro", se bem que, como um consolo desenKANTado, há nele uma "nostalgia do porvir" semelhante ao velho mito de Prometeu.

Nem pense o leitor ter havido em Langtônia uma Lakmi, ou a mulher-robô com sua dança obscena como em La chute d'un ange, do precursor Lamartine. Se seu negócio, leitor, é ainda comparar, porque você vem da cultura do palimpsesto, pense então em Murray Leinster que em 1933 imaginava que os deuses gregos eram produto de mutação radioativa e que a cabeça de Górgona era um projetor de raio paralisante. Não procure os hitleristas Goebbels, Goering, Himmler ou Borman em Langtônia, pois ela era muito diferente da tradição de um Philip K. Dick; tampouco invente simulacros baudrillardianos entre os organismos digitais de Ray com famas e cronópios de Cortazar, ou com a parafernália obsoleta que vai de Pinóquio ao ET de Varginha, do mito do progresso ao "colapso da cosmologia racional".

Nada comparável à "civilização espacial e o tempo dos sobre-humanos cheios de poder", de Stan Lee; às degenerações biológicas em Van Vogt, ou a uma "infinita e constante saudade de um mundo cheio de defeitos, mas um paraíso em relação ao futuro", como em outro Ray, Bradbury. Langtônia não era o Círculo da Força na acepção de Arthur Clarke. Na verdade, Langtônia era um entre-lugar, no sentido "exilado" de Silviano Santiago, um ambiente digital onde mutações (relâmpagos) programados causavam mudanças aleatórias no código DNA dos organismos e onde a morte (caveira) eliminava programas velhos ou defeituosos. Ali, o programa ancestral, um auto-replicante usado para iniciar o sistema Tierra, mediante três genes, fazia com que o programa medisse a si mesmo com absoluta auto-suficiência. Tinha ele, também, um parasita, que o jornal BoCHIPchos comparou (de novo!) com os políticos neoliberais: um processador para se auto-replicar pela execução de um outro organismo que estava nas imediações, produzindo um parasita filho; e, finalmente, um hiper-parasita, que roubava o processador de um parasita e com o qual podia gerar dois filhos simultaneamente.

Langtônia era uma questão de linguagem C — interessava-lhe evoluir através da mutação (mudando-se os bits aleatoriamente), ou recombinação (permutando-se segmentos do código entre diferentes programas), permitindo que a seleção natural, ou melhor, artificial, pudesse melhorar o código por tempo indeterminado. Podre de chic, concorda o leitor? Alguns programas eram gerados — pasme! — por seres humanos, mas nada faziam além de cópias de si mesmos, clones franchões na memória do computador virtual. Foram, todavia, os outros programas, criados pelo computador virtual, que lograram o poder da seleção artificial. O sistema provia também um outro, que mantinha o registro de nascimentos e mortes das criaturas de Ray, mantendo, concomitantemente, um banco de genes de genomas que tinham sucesso. Ele facilitava, ainda, as análises ecológicas, registrando os tipos de interações ocorrentes entre criaturas. O sistema resultava, portanto, de uma metáfora computacional — admitida por Ray — da vida orgânica, na qual o tempo de processamento era o recurso "energético" e a memória, o recurso "material". Tierra era assim um conglomerado de comunidades ecológicas que se auto-regulavam experimentalmente em níveis de exclusão e coexistência competitiva, regulação de populações no contexto parasita-hospedeiro, o efeito de parasitas no aumento da diversidade das próprias comunidades e o papel do acaso e fatores históricos na evolução.

Era, na concepção de Ray, a primeira reserva "natural" do ciberespaço. Com um diferencial: tudo que era criado em um dia podia ser destruído no mesmo dia. Importante era salvar as sementes das criaturas, o que Ray não fazia porque, segundo ele, havia 2 à 32ª potência sementes aleatórias, quantidade infinita de configurações como resultado de 50 variáveis ambientais que afetavam o curso da evolução do Tierra. Eram essas diferentes condições que geravam outros conjuntos de indivíduos e espécies, virtualmente presentes. Com uma vantagem distinguida pela esposa do biólogo: nada precisava ser alimentado.

Aí veio a encrenca. Terroristas relígio-metafísicos, tementes de que os organismos digitais de Ray pudessem transformar Langtônia no paraíso dos andróides, cyborgs e aberrações biológicas, capazes de detonar mensagens genéticas através de mutação por transformação acidental, com conseqüências catastróficas contra a mais-valia operária e naturalmente ecológica — deram o grito, armaram-se de argumentos retóricos contra a irracionalidade do imaginário de Ray. Alegaram os intermilenares conservadores que 1) o sistema Tierra causava angústia nas crianças, provocava inibição das pulsões adultas, espalhava a incerteza trabalhista com a ameaça do desemprego em massa; 2) que o programa era ateu, mas pressupunha os cientistas da computação brincar de Deus mediante a manipulação da vida humana; 3) os perigos in vitro superavam os benefícios; 4) Tierra teria imediatamente de deixar de existir para nunca ser real no futuro; e 5) exigiram fosse tudo deletado e Ray submetido a uma lavagem cerebral. Ray, é claro, não concordou. Exauriu-se em defesa do seu projeto. "No fundo, galera vintessecular, todos vocês têm medo de si mesmos. Minhas criaturas são politicamente ecológicas e corretas, mais úteis à Terra e ao Tierra do que seus mutantes da Cidade de Clifford Simak, que ensinam segredos técnicos às formigas e provocam a emigração humana para Júpiter. Vocês estão cometendo um ledo ivo engano; gerando uma distopia com visão moralista e pessimista do progresso científico. Meu objetivo, corroborado por Foucault, quer 'garantir o mundo contra a morte', ou seja, contra a previsibilidade total e absoluta. Não há conflito entre o que faço e o que vocês deixam de fazer. Afinal, já dizia o poeta e xará Thomas Gray — 'quando a ignorância é felicidade, é loucura ser sábio'. Até mesmo a consagração da dúvida é uma tradição religiosa que remonta à Aeropagítica de John Milton. Vocês alegam que crianças langtonianas sentem angústia causada pelo Tierra e hiperbolizam sua própria desinformação e seu próprio preconceito. Não se torna nada pós-moderno por decreto, mas remetam a William Blake em Auguries of innocence e terão uma resposta convincente: 'Quem ensinar a criança a duvidar — nunca sairá da cova fétida. — Quem suspeita a fé da criança — triunfa sobre o inferno & a morte'. O que vocês tentam me impingir é uma compilação de idéias chauvinistas, esperanças e medos antigos e pouco imaginativos, disfarçados de fatos refutáveis num Universo que se sabe em expansão. Vocês, sem experiência de liberdade, seriam capazes de suportar o ônus do atraso, do recrudescimento, da História? Não! Minhas criaturas ecológicas não são como as plantas vingativas que dizimam a humanidade como as de O dia das Trífides, de John Wyndham. Vocês pretendem uma nova inquisição? Argumentam com a doxa que o computador, ao contrário do bem, pretende dominá-los, reproduzindo, clonando mesmo as forças elementares da natureza, para em seguida e sem contemplação, controlar as suas forças pulsionais; ou, como narra Zamiatin em Nós, conquistar a Fome algebricamente e desencadear o Estado Único contra o outro governante do mundo — o amor, e tudo reduzir à ordem matemática não da consciência, mas da máquina? Coisa mais antiga! Ao contrário de vocês, que como exploradores mecânicos fizeram a devassa da natureza (obs.: leitor, releia, neste livro, o poema A 6ª extinção), não criei Tierra com tecnologia predatória, tampouco me incluo entre os cúmplices da paisagem industrial do Ocidente, paisagem do inferno e da morte suicida que vocês aceitam por temor ao esvaziamento absoluto do espírito humano pelo titanismo, aindfa que arvorem-se, culturalmente, em defesa intransigente da ecologia. Hipocrisia! Vocês torcem para que Tierra produza monstros bíblicos para invadir sua cidade e temem que esses devorem os ímpios, os pecadores, os apologistas da escatologia. Vocês vêem o lado weelsiano do Tierra, que não existe, não é fato, quando deviam se lembrar de uma frase do conto We all die naked, de James Blish, que diz: "Nós não resolvemos o poblema. O problema é que nos resolveu".

De nada adiantou o discurso de Ray. Os utopistas de antanho bateram o pé e, por igual, tergiversaram com a mesma eloqüência. Tudo inteligível, posto que típico dessas intrigas e adversidades. Juntos, eles não temiam Tierra uma mera previsão do futuro, mas uma vivência imaginária de faltas e/ou excessos experimentais no real histórico. E nele, a utopia presumível implicava em um desenraizamento do tempo e na idéia contraproducente de que a perfeição limitava e esmagava as potencialidades humanas. Além, é óbvio, de se sentirem freudidos, porque o superego, que representa as tradições e os ideais do passado, resistia sempre aos impulsos da nova situação criada por Tierra em Langtônia, mudança sentida como a morte dolorosa de uma condição vivida in natura, uma vez que, reitera-se para melhor compreensão do leitor, as exigências do superego estão ancoradas num passado remoto cujas formas tendem a ser conservadas no vinagre de uma poderosa dinâmica psíquica inconsciente. O que, al dente seria o mesmo que afirmar o seguinte: em face da suposta catástrofe decantada em Langtônia pelos relígio-metafísicos, em relação à nova ordem tecnocrática vigente em todo o mundo, qualquer mudança alteraria fundamentalmente as relações ideológicas entre os indivíduos, menos, contudo, entre os indivíduos ou criaturas gerados pelos organismos digitais de Ray. O conto Uma rosa para o Eclesiastes, de Roger Zelazny, ilustra bem esse temor moderno; a similaridade é lingüística: da mesma forma que os langtonianos não entenderam a linguagem C do sistema Tierra, mormente porque apenas parte da população real havia superado o analfabetismo tecnológico e concluído a transição entre datilografia e software. Na narrativa ficcional Gallinger, um técnico em Lingüística, da terceira expedição enviada a Marte, torna-se tradutor para o inglês dos textos sagrados do planeta vermelho, em cuja missão veio a descobrir que uma catástrofe. Vinda de algures do Universo, havia tornado estéreis todos os homens marcianos e quejandos cósmicos, donde ter sido escolhido pela matriarca para fecundar Braxa e assim fertilizar o planeta. Concluída sua ordem, foi enxotado e, diante da perspectiva de não ver o filho e por ter sido usado enquanto reprodutor, o wasp comete suicídio.

O que Ray desconhecia: o sistema Tierra estava, por si mesmo, como um digitalizado "fermento de conotação livre", gerando mudanças aleatórias no DNA dos organismos, levando o processador do hiper-parasita a produzir prole bastarda que, por não identificar a célula-mãe virtual pôs-se a alterar artificialmente o pathos das criaturas. Ray, ao tomar conhecimento disto, passou a simplesmente eliminar a potência 2/32 de sementes aleatórias, resolvendo o problema sem, entretanto, convencer os langtonianos reais de que estava certo. Os langtonianos derrubaram-no com um aforisma de Yevgueni Zamiatin: "pois só o que se mata pode ser ressuscitado". Segundo Barthes, que lá esteve via internet, aquilo era a fala escolhida ideologicamente pela História para converter o próprio real histórico num natural. Lévi-Strauss havia feito leitura semelhante, ao analisar a Revolução Francesa. Literariedade: literatura enquanto efeito social, mas Ray lembrou-se de Resnais dizendo em A guerra acabou: "O que se vê, o que se ouve não é suficiente. Existe também o que se imagina". Ele, Ray, não tinha Tierra como projeto de provocação do imaginário coletivo, contemporâneo, tampouco uma espécie de sonho controlado, um jogo digital de significados intercambiáveis, mas tinha uma certeza assumida pelos langtonianios — "o sonho da razão produz monstros".

O pior viria em seguida. E se você, leitor, conseguiu chegar até aqui sem sentir um enfarto intelectual, um pití metafísico, náusea ou indiferença, há que prosseguir ao grand finale deste poema-novela. Toda a população langtoniana estava sendo escamoteadamente ludibriada pelo governo tecnocrático. No silêncio da noite, comboios de lixo de toda espécie foram sendo enterrados na periferia da city, sob alegação de o mesmo vir a ser reciclado, gerar empregos e um novo tipo de combustível específico para eletrodomésticos, capaz de economizar energia elétrica e solar. Bem que Ray havia não só desconfiado da súbita operação em Langtônia como, numa atitude de defesa do Tierra, tentou alertar a população contra o destino do lixo ali conservado subterrâneo. Como De Tohil Vacca, personagem do já citado We all die naked, de James Blish, o biólogo intransigiu ao dizer que, como em Nova Iorque, já não se podia mais resolver o problema do lixo, porque não havia mais solução possível: o lixo condenaria qualquer possibilidade de sobrevivência geológica não apenas da city, mas do Tierra e na Terra, pois desconhecia-se a real intenção de Langtônia ter-se transformado num museu de dejetos, um dos maiores do planeta. Bingo!

Dados e informações cruzados por hackers, talvez contratados como terroristas da informática, aproveitando o efeito colateral da energia do lixo, criaram um vírus poderosíssimo do qual os organismos digitais do Tierra passaram a se alimentar de modo compulsivo. Chamaram-no bug. E seus criadores tornaram-se anonimamente conhecidos como cabeças de bug. Somente depois que o vírus atacou e mudou o comportamento de fornos de microondas, cafeteiras, sistemas de segurança e computadores domésticos é que os langtonianos deram o braço a torcer ao help de Ray, que conseguiu eliminar o famigerado protossecular W32MYPICS.Worm, e listar a virulência prevista para atacar em qualquer dia do ano 2000, como o W97M/MMKV.A,B e C, o ICQ Greetings e o Panthogen (todas as segundas-feiras); os que não atacam em data específica, como o Polyglot ou Y2Kcount e o Worm.Fix 2001, listando em site todos os que atacariam no primeiro mês do 3º milênio. O problema, contudo, não estava definitivamente resolvido: o bug ainda estava servindo de alimento para o Tierra e poderia, velozmente, atingir a 1 bilhão de usuários em rede pelos programas já consumidos, como o Viruscan, Norton Antivírus e o Innoculate IT, além de terem sido disponibilizados e-mails de consolo pela IBM, Compaq, Microsoft, Bios e até do Departamento de Estado norte-americano para quem pensava em viajar — http://travel.state.gov/y2kca.html.

Ray tentou explicar à população que pouco ou nada essa operação daria resultado, uma vez que, hoje, existem vírus que não precisam de anexos, pois já vêm embutidos no código HTML do e-mail. Os langtonianos, ante o desespero, optaram por transformar Ray de vilão a salvador da pátria e ele só aquiesceu, não pelo juramento científico, mas pelo seu sistema Tierra, cujo objetivo ecológico estava exposto ao fracasso pela ação ignóbil e bárbara dos hackers delirantes com o iminente triunfo do mal. Thomas Ray lembrou-se, então, de outro xará seu, o escritor de FC Thomas Disch, autor de Genocídio, em cuja obra os seres de toda espécie são eliminados à base de inseticida por extraterrestres que fazem da Terra um vasto campo agrícola experimental. Para os Ets, o conceito de "humanidade" não tem a menor importância, e os terráqueos são dizimados como praga numa plantação. A persistir o vírus bug, seu projeto ecológico Tierra seria convertido numa praga igual ou pior à de Genocídio. Como o sonho, segundo Barthes, "essencializa a vida em destino", Ray concluiu que a solução estaria na capacidade de ousar, de afrontar a realidade, ainda que viesse a comprometer in totum o seu trabalho e sua credibilidade científica já posta em xeque em Langtônia. Com base em pesquisadores da Universidade do Texas em Dallas, EUA, que desenvolveram método para produzir substitutos sintéticos para anticorpos — proteínas que reconhecem e combatem substâncias estranhas chamadas antígenos, no corpo humano, mediante a identificação de pequenas moléculas denominadas peptídeos, e de sensores de agentes biológicos -, idéia de purificação in vitro coordenada por mais um xará de Ray, Thomas Kodadek, o biólogo de Langtônia fechou-se em seu laboratório com a esperança de criar, à semelhança dos anticorpos substitutos de Dallas, um antivírus que salvasse o Tierra e, por extensão, a Terra. Ray foi encontrado desfalecido, barbado, faminto e sedento três dias depois. Levado ao hospital para tomar soro, fazer exames e restabelecer-se da maratona antivirótica, confessaria seu fracasso: o bug reagiu incólume a todo o seu conhecimento biológico-informático. Os langtonianos que o visitaram olharam-no com desprezo e, igualmente desiludidos, abandonaram-no à própria sorte. Levas de gente foram abandonando a city em regime easy rider. As conseqüências do bug o leitor já sabe: saques, black-out-éclair, atos incendiários, vandalismo, inúteis concentrações de lideranças comunitárias e religiosas, quebradeiras, frustrada cobertura rádio-televisiva, congestionamento rodoviário, acidentes mil, crianças perdidas, alguns suicídios de ocasião, esgotamento de medicamentos e hospitais saturados, impotência policial, megaentropia. Um day after em nível micro. Um Armagedon provinciano. Um horroshow cibernético.

Em algum lugar, os rackers festejavam vitória contra a (des)ordem estabelecida, a fragilidade humana, a ineficácia da ciência, em algum lugar. Faltava pouco para o bug materializar-se nos organismos digitais, transformar-se em seres reais alienígenas e acabar com a vida. Lastrou-se com a velocidade do pensamento, de modo que ao chegarem em outra city, os langtonianos já encontravam ali os mesmos sintomas de caos. E não foram poucos os que se deixaram ficar pelo caminho apocalíptico, imbuídos apenas do chavão da fé salvacionista: "Seja o que Deus quiser".

Ninguém sabe, porque ninguém viu, como Ray reagiu à própria morte, e de volta ao laboratório pôs-se a refletir insanamente sobre os anátemas langtonianos, detendo-se no de Zamiatin: "pois só o que se mata pode ser ressuscitado". Eureka!, monologou o moribundo biólogo. Lembrou-se de Alphaville, de Godard. Ligou o computador e iniciou a digitação de textos de memória, usando-os em rede como antivírus contra o bug. Ao esgotar sua reserva pessoal, apanhou livros diversos e aleatoriamente foi gravando e salvando fragmentos de poesia no micro, no laptop, enquanto repetia, ainda débil, que "só o que se mata pode ser ressuscitado". Surpresa! Ray observou que o bug tinha alergia à poesia como o ser humano ao ácaro. À proporção que os poemas iam fazendo sentido, o vírus bug tornava-se non sense, e apagava-se, até deixar a tela do computador desintoxicada, saudavelmente branca, de novo cheia de poder. O Tierra e a Terra estavam salvos.

 

 

>>> Continua