A TRILHA

 

A música eletrônica começa lenta, com o som de um teclado.

Maria Elisa sempre achou muito engraçado o fato de Marcela gostar de dançar tais coisas. Canções infantis estavam fora de seu universo infantil. Aos sete anos de idade, Marcela não se interessava por letras de música. Gostava de não entender as palavras em língua estrangeira dos CDs da mãe e gostava ainda mais de não identificar traços de voz humana nas músicas eletrônicas suaves que inundavam a casa nos começos das manhãs. Aos sete anos, Marcela era a única coisa que fazia sentido na vida de Maria Elisa.

A cesta de roupas sujas sempre carrega alguma peça em seu ventre. Roupas quase nunca sujas. Calças, camisas e calcinhas usadas apenas uma vez antes de ir para a cesta. Maria Elisa pega a calça jeans, mergulha o tecido pesado no tanque cheio de água e vai para a cozinha. A música eletrônica faz uma pausa no final da introdução.

Marcela sempre começava a dançar de olhos fechados. No espaço amplo da sala da casa velha, girava sobre o próprio eixo até começar a perder o equilíbrio. Então abria os olhos e sorria para a mãe, que retribuía, atenta à poesia matinal da cena. Marcela caía, às vezes.

As mãos de Maria Elisa espalham lentamente o detergente sobre a louça. São poucos vasilhames, e a tarefa deve durar o suficiente para que as coisas feitas na manhã se encaixem perfeitamente umas às outras, ocupando o tempo sem deixar espaços vazios. A música eletrônica incorpora novos instrumentos e já não faz mais pausas. O som toma corpo de forma sutil.

Os guardanapos de seda, que nunca eram usados no dia-a-dia da casa, ganhavam função nas mãos de Marcela. Desenhavam no ar curvas suaves, ampliando os movimentos coreografados de seus braços curtos. Após preencher toda a sala a dança escapulia pelo corredor que dava na cozinha, escondendo-se do olhar de Maria Elisa, para só reaparecer na porta da frente. Marcela gostava de contornar os obstáculos do jardim, criando uma trilha que margeava os vasos dispostos aleatoriamente no gramado, a piscina redonda, a gangorra pintada de vermelho e amarelo e, finalmente, a varanda, que dava acesso à porta de entrada da sala. O percurso em volta da casa era feito no tempo correspondente ao que era possível a uma criança de sete anos mas, na percepção de Maria Elisa, demorava um pouco mais.

Por mais que se detenha na xícara, no pires, na colher de chá, no pratinho com farelos, colocados minutos antes dentro da pia, Maria Elisa não consegue demorar tanto quanto gostaria. É necessário acender um cigarro todas as manhãs para preencher uma parte do tempo com fumaça. Sentada na cadeira ao lado da janela que dá vista para a varanda, aciona o isqueiro. O clique da pedra sai sincronizado com um dos contratempos da música eletrônica e produz uma chama azulada. O primeiro trago é profundo e parece envolver o coração como uma cortina. A fumaça nascida da brasa sobe calmamente, como um rabisco em aquarela. Os desenhos da fumaça parecem às vezes quase se materializar na forma de uma criança dançando. Maria Elisa olha para o centro da sala e vê a estrela perfeita da coreografia de Marcela.

Além de fazer a estrela, repetida várias vezes e em seqüência, Marcela gostava de olhar tudo de cabeça para baixo. Caminhava apoiada nas mãos de uma extremidade a outra da sala e encerrava o percurso deixando-se cair sobre a almofada de estampa floral apoiada na parede. Era a deixa para o único momento em que Maria Elisa se atrevia a interferir, correndo até o pequeno corpo espalhado na almofada e metralhando-o com cócegas. O som dos risos de Marcela tomavam então conta do mundo, e o mundo, por alguns segundos, cabia totalmente entre as paredes antigas da sala de estar.

O cigarro representa para Maria Elisa preenchimento, enquanto o tempo rasteja pela manhã. Produz a fumaça que dança no ar, assombrando a sala como um espectro. Fornece a fumaça que invade o sistema respiratório gerando prazer físico. Mantém acesa uma brasa viva que hipnotiza o olhar que se detém em seu brilho. O tempo de um cigarro é o tempo de um suspiro. Após amassar o filtro branco contra o vidro grosso do fundo do cinzeiro, Maria Elisa fecha os olhos para dar aos ouvidos o privilégio de ser o único canal de comunicação com o mundo exterior. A música eletrônica chega em seu auge e emociona Maria Elisa a ponto de fazê-la chorar através dos olhos fechados.

 

***

 

Após deixar a almofada ecoando restos de sua risada, Marcela saiu da sala pelo corredor de ligação com a cozinha. Maria Elisa concentrou-se no longo trecho final da música alta que havia escolhido aquela manhã. Decrescendo em intensidade, o som foi silenciando lentamente, como o chamado cada vez mais distante de alguém que é levado para longe. Quando o silêncio enfim chegou, anunciado pelas caixas de som, Marcela ainda não havia voltado. Maria Elisa ficou na dúvida se a concentração dedicada ao trecho final da música, amplificada pelo cigarro de maconha, havia dilatado o tempo ou se Marcela estava realmente demorando mais do que devia. Simulando calma para si mesma, buscou a porta mais próxima que dava acesso à área externa e correu os olhos pela trilha particular de Marcela. O olhar rápido e ansioso não a fez perceber de imediato algo boiando num dos cantos da piscina, parcialmente oculto por uma das bordas. A segunda passada de olhos, entretanto, caiu sobre a cena com a precisão de um tiro no alvo. Maria Elisa demorou alguns segundos antes de começar a correr, tentando organizar o caos que se formou em sua mente. Quando chegou à beira da piscina viu o fio de sangue se desprendendo da cabeça de Marcela. Pulou na piscina gritando desesperada e resgatou o corpo que parecia o de uma boneca de pano encharcado. Sem saber exatamente o que fazer intercalou, sem muito critério, massagens sobre o peito e uma respiração boca a boca mal aplicada. Após um tempo indeterminado se deu conta da presença da morte aninhada em seu colo. Na ardósia, ao lado de uma poça d'água, a trilha criada pelo escorregão e a queda e os respingos de sangue na pedra contavam uma história.

 

***

 

Antes de encarar a calça jeans que está no tanque, Maria Elisa passa ao lado do aparelho de som e boicota o início de uma nova música eletrônica. Substitui o CD por um outro, com músicas nacionais de letras simples e refrãos repetitivos. As lágrimas já não descem mais mas existe uma aflição que provavelmente nunca deixará de percorrer dolorosamente cada cavidade irrigada de seu corpo. Carregando a dor e a angústia que já são inseparáveis de sua existência, Maria Elisa sai da sala e atravessa o corredor que vai até a cozinha. Esvazia o cinzeiro no recipiente plástico de lixo e se posiciona diante do tanque, do lado de fora da casa. Dali pode-se ver os vasos distribuídos aleatoriamente pelo gramado, a piscina redonda, a gangorra vermelha e amarela, a varanda de acesso à porta de entrada da sala. Antes do meio dia já terá lavado as peças de roupa quase limpas, terá varrido toda a casa, feito qualquer coisa para comer e fumado mais um cigarro. Às duas estará acionando a alavanca do relógio de ponto de escritório. Às dez já terá ido para a cama.

 

 

 

 

CAMPO FÉRTIL

 

Ai, caralho. Porque é que essas porras dessas tampinhas de pote de iogurte sempre rasgam no meio? Não é possível que não exista no planeta inteiro um infeliz que não tenha inventado um jeito da gente abrir essas embalagens sem gastar toda a paciência. Ai, buceta. Quando eu tô sozinho em casa dá vontade de encher a cara de qualquer merda existente no armário de bebidas e depois ir prá cama bater uma punheta e dormir de cansaço. Só que a droga do iogurte não deu nem pro começo da minha fome e a geladeira tá parecendo caixão de porta de funerária. Bosta. Se pelo menos tivesse maconha eu podia fumar até sufocar, ligar o som no talo, ou então pegar o violão e ficar viajando até não agüentar mais e aí desmoronar na cama. Dá vontade de estar sangrando, sei lá, em qualquer parte do corpo, e ficar brincando com o sangue, escrevendo meu nome com sangue na bochecha. Dá vontade de raspar as sobrancelhas igual aquele cara daquele filme do Pink Floyd. Dá vontade até de chegar perto da janela do quarto, olhar pros vinte andares abaixo do meu e ficar brincando de "faz de conta que eu vou pular". Ficar com metade do corpo prá fora e achar um jeito de me sentir desequilibrando, e aí voltar e dar um soco com toda a força na parede prá sentir dor. Saco. O iogurte tá dando azia e a cabeça vai acabar doendo por causa do tédio. Dá vontade de entrar num lugar cheio de gente e ficar mandando todo mundo tomar no meio do cu. Mandar um monte de babacas enfiar o dedo no cu e rodar. E as piranhas enfiarem uma garrafa na buceta ao invés de ficarem se exibindo. Ai, que merda. Porque é que eu ainda não tenho um carro? Eu ia prá estrada pisar o mais fundo que eu conseguisse até fazer o carro derrapar prá sentir o perigo. Até bater o carro mesmo e sair lá de dentro sangrando, mas inteiro. Sentir o motor quase explodindo e aquele frio no corpo todo de adrenalina correndo solta dentro de mim. Ou então achar alguém prá dar porrada. Ver sangue espirrando da boca de algum babaca. Chutar a barriga do filho da puta até ele parar de gemer. Bater de olhos fechados prá sentir o meu coração batendo também com toda força. Merda. E se eu bater a minha cabeça na parede? Quem sabe eu paro de sentir essas coisas? Vontade de quebrar a casa toda. Jogar tudo o que é de vidro na parede. Jogar a TV pela janela e ver ela explodindo lá embaixo. Jogar o computador também. Botar fogo nas cortinas. Minha mãe ia ficar puta. Meu pai ia querer me trucidar. Mas aí eu ia dar porrada nele também. Babaca. Ai que vontade de enfiar um lápis na mão. Atravessar a mão e sair pelo apartamento passando ela pelas paredes. Ver sangue coagulando na minha camisa. Derramar todo o uísque do meu pai na minha cabeça. Esvaziar os pneus do carro dele. Quebrar os cristais da minha mãe de uma vez só. Derrubar o armário e depois sair pisando descalço sobre o vidro. Ligar o som no talo só prá não sentir nada além do barulho. Fodam-se os vizinhos. Foda-se todo mundo. Eu vou fazer um desenho na parede do meu quarto. Uma caveira. Saco ficar sozinho em casa numa sexta à noite. Ninguém pra sair. Só um bando de colegas imbecis que só pensam em comer as garotas. Palhaços. Eles só querem enfiar seus pintos nelas. Ninguém sabe conversar. Ninguém fala o que sente de verdade. Não tem ninguém pra me ajudar a parar de sentir essas coisas. Nenhuma menina imbecil. Elas só querem saber daqueles escrotos que desfilam nos carros de seus papais. Ai, bosta. Eu queria saber fazer uma bomba. Atômica. Jogar no lugar onde tivesse mais gente. Num jogo de futebol transmitido ao vivo. E ficar rindo da TV. Esse mundo é uma merda imensa. E eu sou uma merda imensa no meio da outra merda imensa. Buceta. Ninguém pra conversar. Ninguém pra gostar de mim. Só o fim de mais um dia sem sentido. E esse sono começando. Esse conhaque vagabundo na cabeça. Essa vontade de fechar os olhos. De ter um sonho bom. De ter um mundo perfeito dentro da cabeça. Um mundo todo verde e azul, com uma brisa morna e com cheiro de mato. Uma namorada linda. E o sol. O sol me embalando como um colo quente. Um colo... quente...

 

 

BARATAS

 

Assim que a dona da pousada se retira, um silêncio pesado despenca sobre meus ouvidos fazendo com que uma espécie de surdez se instale temporariamente. A sensação dura pouco. À medida que vasculho o mundo em volta com os sentidos descubro, escondido atrás das janelas fechadas, o som de ondas desmanchando-se numa praia próxima. Mas ainda assim é o silêncio, encrustado na escuridão. É estranha a sensação de estar isolado. Por alguns instantes a falta de sentido da vida torna-se evidente e envolve a alma. A densidade do ar aumenta absurdamente, o corpo fica paralisado e a mente começa a agir desesperadamente para criar novas ilusões que afastem o vazio que ameaça engolir o mundo. A escuridão começa a ceder, dando espaço à penumbra. Os objetos refletem a pouca luz que a noite sem lua oferece e se impõem aos olhos, sutilmente, o suficiente para que a alma já tenha alguma distração. Uma escada, uma cama, um colchão velho e descoberto, tábuas simulando uma estante, velas, fósforos. A noite está um forno.

A solidão faz de mim um ser humano especial. Pobre de mim. Decidir tomar um banho frio na penumbra das três horas da madrugada em uma pousada vazia significa ser especial. Mas são os truques da mente, para dar sentido à existência. A felicidade depende apenas de se ter boas ilusões. Risco um palito de fósforo e acendo uma das velas. Penso no mundo lá fora e sua luta pela sobrevivência. Ando nu pelo chalé e chego ao banheiro para uma primeira averiguação. Uma pequena janela que permite a vista da praia, um espelhinho barato de moldura alaranjada, uma pia branca, um vaso branco, azulejos brancos. Giro a torneira e o silêncio escapa pelas frestas. O som da água caindo é ensurdecedor. Não para mim. Mas para o silêncio, que aguarda escondido nos cantos a hora de voltar. Ocupo vinte minutos da minha vida sem sentido com o roçar da água, nem tão fria, sobre a pele, e sinto-me como numa festa particular. Meu corpo dança com a água, embalado pelo som do chuveiro e luzes piscam na sala escura dos olhos fechados. A vida se manifesta nos sentidos humanos. Mas a festa acaba e traz de volta o vazio e a necessidade de se criar outra ilusão. Sento-me no colchão, abraçado à toalha, e me entrego aos padrões de luz e sombra projetados na parede a partir da vela acesa. As imagens trêmulas são fantasmas e assombrações prisioneiras de um suporte, seres que jamais se libertarão das paredes e dos objetos. Tudo é lento. Os sons do silêncio, a vibração indecisa da chama, o tempo, minha mente. E então, a paz acaba.

Um ponto negro rasteja pelo chão na velocidade da luz. É a impressão que tenho quando o vejo. Meu coração acelera em protesto pela quebra da calma. É uma porra de uma barata. Eu não penso em nada. Encontro o tênis ao alcance de uma das mãos e, numa velocidade acima à da luz, encurralo o ponto preto contra a parede e esmago-lhe o corpo com toda a força que a raiva me proporciona. O vazio só pode ser meu. O barulho é o de uma barata sendo esmagada em câmera lenta. O tênis desce sobre uma casca amarronzada, pressiona-a para baixo contra um corpo frágil e o faz explodir, esparramando uma mistura esbranquiçada de vísceras para todos os lados. A sola do tênis fica um nojo. Não consigo deixar de pensar nisso e preciso ir ao banheiro lavá-lo. Volto ao quarto, recolho a barata ao lixo e deixo o chão sujo mesmo. Pelo menos é alguma emoção na noite.

Volto à cama para sentir o colchão que terei sob o corpo na conclusão da madrugada. Bem ruinzinho. Sinais claros de mofo, sob medida para minhas alergias respiratórias. Tenho esperanças de que o lençol guardado na mochila cubra todo o mofo e seus efeitos desastrosos. Arrumo a cama, deixando o travesseiro na posição onde tombará minha cabeça, e trago uma vela para perto. Faço uma tentativa de continuar a leitura de um livro iniciado dentro do ônibus. Não dá. A luz é pouca para as letras. Mas é suficiente para me fazer ver a segunda barata. Saco! Encontro o tênis recém lavado e coloco a filha da puta na alça de mira. Ela fica encurralada no mesmo canto da falecida. Destilo mais raiva e o tênis desce pesado. A casca marrom escapa pela direita. Mas não é muito difícil persegui-la e, na segunda tentativa, produzo mais vísceras esbranquiçadas. Deixo-as na sola do tênis desta vez e volto para a luz vacilante próxima ao travesseiro.

O ponteiro dos segundos do relógio de pulso não consegue completar uma volta. Deve estar havendo alguma convenção de baratas. Mais um ponto preto desliza rapidamente pelo piso, mais uma perseguição, mais uma morte. Nem volto a me deitar. Agora sou um vigia. E as porras das baratas justificam minha vigilância. Continuam a brotar do piso, descaradamente. Até eu contar sete. Até que eu tenha sete cadáveres dentro de casa. E então eu desisto. Assumo a derrota. Entrego o território ao inimigo. Atravesso o cemitério de insetos para chegar à escada e encontro uma outra cama no segundo andar.

Mas baratas sobem escadas (eu acho), e a descoberta não me anima muito. Duas portas se encaram, fechadas. Abro uma e outra. São passagens para duas varandas, uma que vigia a cidade, a outra, a praia. Atravesso a da praia, lógico. Descubro uma rede dobrada no chão e penduro-a nos ganchos na parede. Busco o lençol e o travesseiro no andar de baixo e demoro um bom tempo até achar uma posição cômoda para o corpo. A noite está limpa e quente. Não me preocupo com a possibilidade de uma insônia. Basta olhar o céu, a praia, a noite escura. O vazio. Sei que rapidamente serei engolido.

 

 
 
(imagens ©pink panter | gogu

 

Alfredo Albuquerque (Belo Horizonte-MG, 1964). Escritor, fotógrafo, em 2001 foi um dos ganhadores do prêmio Xerox/Revista Livro Aberto com o romance Os círculos. Em 2007, publicou o romance juvenil O quarto das horas. Vive em João Pessoa, Paraíba.

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