10° tom do epigrama

 

Através da travessa de massa verbal,

atravesso o verso travado pelo trinco

da não criação, enrugado, cravado

no peito insosso ao dizer, ao pensar, ao agir,

verso avesso a idéias, a imagens, a amores,

sábio, safado, ausente e, mesmo, contente;

em rica rima, mais que nobre, e já pobre,

podre, em segundos, tudo torna se quiser

e inquieta com sal e alho o belo velho

largando em cova esse antigo rumor de amor;

poesia que se esqueceu de cobrar termos

distantes da língua alegre que rola

brincando em inventar o verbo no atento

de versos que se fazem tortos e nossos;

pois que se a fala do povo é mais tropical,

o grito, mais exclamativo e atrevido,

o amor, mais bendito, bem dito é o coro,

que no ser se mostra em seu suado coro;

e se o metro corre solto em explicações,

é porque não é de outra forma a fala

que umedece a garganta e os ouvidos aqui;

é como um canto o baiano, alagoano,

pernambucano, carioca, mineiro

que se ouve no meu verso brasileiro,

na minha fala nordestina e rasgada

em goela seca no vento do sertão

e na fuligem do asfalto, em pino tostão;

que isso não é mera fineza dos meus nervos,

pois enquanto meus dedos têm escrúpulos

vadios, só imprimo a essência nossa

por mera cegueira em fracas almas outras.

 

Humanas.

 

 

 

 

 

Buraco

 

Havia poucas canastras na mesa,

mas todas vermelhas e de alto valor:

ases, curingas, damas, valetes.

Os pares de jogares possuíam todo o vigor das catas,

e as catas enérgicas corriam desesperadas,

consumiam a luz do ambiente também vermelho,

 

numa busca incessante de perpetuarem a si mesmas.

 

O par de mortos soturnamente posto em cruz

agonizava na incerteza de não ser,

mesmo que em ser morto é também ser,

embora seu valor esteja bastante omisso nas lembranças,

pois os jogadores só atentam para o bagaço bojudo.

 

E enquanto o bagaço ia se enchendo de cartas valiosas

o cansaço e as rugas se estampavam nas faces jogadoras,

e com o passar de cartas, os jogos e semblantes iam se definhando

as trincas mal formadas e sujas só se arrumavam em negras cartas,

se misturando com o negro dos rostos numa confusão abstrata,

até que todo o calor de antes vagava para os olhos desconfiados,

o roer de unhas, atentos agora com o fim das cartas

que mesmo sendo negras ainda eram cartas.

 

Na medida em que a partida de buraco se encerrava em cartas escuras,

as velhas cortinas dos olhos fechavam um espetáculo mal representado

e o tempo de ser passava agora a outro tempo de ser e não ser no tempo.

 

Pois tudo de antes tão organizado se embrenhava perdido nas lembranças

e as cartas negras encenavam um luto de dedos sem mais movimentos.

 

 

 

 

 

Graúdo

 

Tinha sempre o mesmo objeto na frente da cara,

a mesma razão de sempre ser não sei quê.

Não possuía o medo de todos no dia anterior,

mas sabia fingi-lo da maneira mais sublime.

No entanto enfadado com seu cheiro de somente ser somente,

dava a riscar sozinho seu traço inexistente,

em sua coivara embrenhava-se sem dor

e assim se arranhava fatalmente no queimor de suas lágrimas.

Vivia até não poder mais viver sem se desfazer,

sem sumir sem se dar conta de si e dos outros.

 

Tinha a cabeça grávida de nada,

o nada nasceu e engravidou de nada de novo

e o nada sem nada propor à vida morreu no nada.

 

 

 

 

 

(Un)inverso

 

Cambiei para as coisas que julguei serem sublimes

E palpitei com as que me surgiam pálidas

Esperando a exatidão tão torta de todas as coisas;

Deixei de ser a parte que nunca quis ser e que no entanto cravou-se sublime.

Diante da rapa do tacho do amor humano

Retesei-me e maltratei meu curso rasgando os pés nos cacos dos cursos dos

                                                                                                                   [outros

Fixei-me com corpo em molho vermelho, estupefato,

Baratinado com coisas sublimes que já não mais funcionavam

E num reverso de carnes, pálidas outras vibraram espirrando cores

Numa inversão de tudo

Para que logo um se mostrasse embutido no outro

Rompendo com as idéias certas

Mostrando no tudo, o nada, e assim na inversão de tudo.

 

 

 

 

 

Açoite

 

No meu mundo displicente

Eu morro todos os dias

Como quem fere um coração com gana

De apenas destroçar mais um

Num mundo que se explode todo dia

Distante do breu das punhaladas de todos os dias

E no entanto perto do nada que me completa;

Eu moro numa casa de vento

Numa rua deserta e sem nome

Iluminada por uma luz quebrada todo dia

Que se renova para simplesmente

Deixar de viver todos os dias;

Eu me vejo com um espelho de pedra

Onde consigo ser morno ao meio-dia

E mutilar meu coração tão pobre

No podre da minha casa vadia

Que se perde de mim todos os dias;

Engano com a mesma arte que se fez de enganar

Sem pagar tenho todas as putas que quero

Encanto com a mesma mão com que movo meu mundo

Que não suporto nem consigo ser meu

Publico meu conto mais vagabundo

Não deixando de me morder o orgulho

Fustigo meus pulmões com meus tendões decepados

Assassino minha cabeça com um sono atrasado

 

Repouso numa cova que não foi cavada

E apago a luz que se fez para se apagar todos os dias.

 

 

 

 

 

Curvas

 

E de repente perco o fio da meada

Quando sinto meus abalos de músculos

Quando perco o nervoso dos meus dedos

E me abobalho quando sua face cravada

No verso de prata da falsa moeda.

 

Talvez seja o verso falso da moeda real

E que não me atina enxergar o real

Vendo com os olhos embotados

E para dentro de mim rodados

Somente seu corpo bem desenhado.

 

Minha cabeça que vê só a sua

E até estagnada pelos vultos diurnos

Minha cabeça que só vê seus vultos

E nos seus noturnos vultos

minha cabeça permanece parada

sem mais querer viver.

 

 

 

 

 

Pneumonia

 

Delírios, espasmos, trepidações e queimor laríngeo.

A vida inteira que não podia ter sido e que foi.

Apnéia, suor, contorção.

 

Mandaram chamar a avó:

— Bem te disse, "esse não se cria!".

— Te esconjuro, mamãe!

— Paciência...

 

A morte, encorajara-a a aceitá-la assim,

Tão brusca, avisada à beira do berço:

Um besouro atochado na traquéia esquerda;

Coma...

 

Por teimosia, corpo trôpego engoliu os anos;

Por cortesia, o tempo negro estiara para depois;

Por conseqüência, as velas sobre o peito queimaram:

 

— Que fazer, mamãe...?

— Apegar-se aos rosários e abafar com o copo outra vela no peito.

 

 

 

 

 

Imperfeita bailarina

 

Um destino numa estampa amassada na palma das mãos

de uma leve de pintor com tanto despudor,

palavras poéticas perdidas prostradas na palma;

um pintor desgastado

um poeta desgraçado

e juntos na mesma vertigem das tristes artes

elegem seus mundos próprios e contrabandistas

num lento tráfico das minúcias igualmente tristes

dançam de lá pra cá com dedos desiludidos;

de uma mão, escoriações de destinos turvos

de outra, o negro de tintas misturadas

 

unicamente num embaraço de negras palavras borradas

inconstantes bailarinas negras e ossudas

de um destino irreal no espelho mortal da arte.

 

 

 

 

 

Dois versos

 

Corre solto meu poema

o seco termo torva

em meus dedos

dois versos antigos

esmerados no papel

como o salgado do mel;

 

meu verso se soltou

e agora não é mais meu.

 

 

 

 

 

(des) Retesando

 

Com um olhar turvo e soturno

noites adentro na porta descompassada

um riso desiludido estampado nas faces

menstruações que iam caindo tênues

de pardas a pálidas ralas mechas

pernas de mola arregaçada

rechonchudas carnes, peles frouxas

sebos secos, seixos seios caídos

desentesada boca desdentada

a tantos peitos peludos se entregara.

 

Tão destratada Maria Baixinha

se perdera desgrenhada nas falsas rugas do amor;

não querendo Deus ser um destino de Remedios,

com lençóis manchados de noites amargas

na terra rasa lhe cobriu;

e dos homens rápidos e ávidos,

da lembrança vil

 

Sumiu...

 

 

 

 

 

Boldrié

 

Torvelinho:

de dentro a fora

qual ao sal que fora

mel faz o moinho;

intumescida a testa a dor

logo a tintura espalha-a em papel

a fel de lucidez salpicada

e pingos do orvalho em tez madrugada.

 

E assim atada a nós prenhes de sentidos,

tricotada em teias de areia com tijolos

navega sobre mel, dor, fel a tez da idéia...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Solidez das inconstâncias: Januário.

 

— Escrever no fervor sentimental é realmente inconfortante e doloroso. A exaltação do meu profundo sentir, no entanto, não pode ficar às ocultas. Talvez seja mais por uma necessidade que por uma retratação — ou um relato — do meu estado de espírito.

 

Era o que ouviam, constantemente, as paredes internas da sala de Januário. Aí, todos podiam entrar, e sussurrar, e falar, e explodir em vozes tenebrosas, e esvaziar a efervescência do líquido horripilante do silêncio. Tal fala era bastante comum, em virtude da freqüência de escritores sobressaltados para a representação gráfica de seus tormentos, de seus medos, de suas angústias. Coisas que não podiam vir a lume.

 

A taramela azul da porta única possuía um rangido bastante desconcertante e azucrinante, a lembrar a porteira de uma fazenda velha, corroída quase que completamente pelos cupins e pelo sol escaldante. Do lado esquerdo à porta, três corujas estavam, inteiramente, estagnadas, numa disposição a formar um triângulo, com seus olhares ardentes e nebulosos, envoltas por uma moldura arcaica, com detalhes de espadas aos cantos. Abaixo dela, um pouco afastado da porta, existia um centro redondo, com três pés, de mesma moldura do quadro, com um abajur disposto sobre sua diminuta superfície. A completar o móvel, uma cadeira de balanço com molas, que, junto ao som exprimido pela taramela, orquestravam ruídos estridentes.

 

Januário era um tipo de sala-casa. Mas, como? — sim, pode ser! Mesmo com alguns dos incômodos sonoros, sentar-se naquela cadeira centenária, com apenas a fosca luz amarela — quase laranja — lançada pelo abajur, era muito aconchegante. Eu nunca, lá, disso algo. Ouvia, exclusivamente, o eco das queixas ditas antes de minha chegada. Pensava, sentado por algum instante, no sofrimento daqueles pobres solitários. O som das vozes gritantes disputava espaço, em meus ouvidos, com os ruídos ásperos produzidos pela taramela e pelas molas. Malditas sejam essas ondas! Elas me atormentam!

 

A primeira vez em que lá estive, pensei em não mais voltar. As vozes, o ranger, as corujas, a luz fúnebre, tudo me atraiçoava e me fazia delirar. Isso esmagou meu corpo e minha alma. Meu erro eterno foi cometido. Encostado ao abajur, havia um jarro de barro com uma flor que julguei ter infinito tempo de vida, ser a barra vermelha do dia. Terrível julgamento! Minha sina era senti-la em minhas mãos, sobre meu peito, consumir seu cheiro atemporal, enamorar suas formas delicadas — ao menos era o que me parecia —, por um pingo d’água dar-te o inconfundível sabor da vida. Terrível engano! Aproximei-me cuidadosamente dela, aguardei seus polens e, só então, lancei-me ao desejo. Consumi-a lento e enganosamente. Todo o momento, eu estive ingerindo seu amargo líquido, que outrora me caia adocicado ao paladar. Mesmo assim, estando eu um pouco inclinado sobre o centro, suportei com minhas mãos trêmulas. Encontrava-me, do material ao espírito, entorpecido. Efeito de encanto. Minhas frágeis pernas não mais suportavam o peso de meu corpo. Solicitei, assim, auxílio no encosto esquerdo da cadeira, que passou a se balançar com meu corpo trepidante. Meus pulmões já não conseguiam captar o oxigênio necessário para minha respiração, meus olhos cerravam-se lentamente em temível desespero, meu sangue arrefecia. E, nessa ocasião, mais um instrumento se disponibilizava ao tom funéreo da sinfonia. Seus rufos assemelhavam-se ao anúncio de tempestades. A taramela e a mola lançavam notas funestas e sarcásticas. Senti as gargalhadas, que chicoteavam minha honra.

 

Sentia-me muito debilitado. Quase ajoelhado, não desistia de ter para mim a aguardente que provocou o meu último suspiro. Definhado, meu corpo cai a se balançar na cadeira. Terrível suspiro! E lá, ele permaneceu a se movimentar por um período, até que tudo silenciasse. A taramela carcomida cessou em menor. As vozes se perderam no fundo de meus ouvidos surdos. A cadeira seguiu o ritmo do mais recente, e de menor duração, instrumento.

 

— Enchi-te, dei-te os mais incríveis vocábulos, as essências que ardiam em cada pulsar, e, não obstante, apareci-me com o desleixo da escuridão e repleta de passados mais-que-perfeitos — obtemperei com angústia.

 

Pereci. E meu ar secava. Tentei dissimular meu triste fim, no outro mundo, com sorrisos que me paralisavam a face. Tudo era inútil. Pois, em minha peça, o roteiro tinha sido severamente castigado pela má atuação da falsa atriz. Tinha me tornado — ou será que esta cartilha já fora escrita? — em um pobre ser enclausurado na sua ânsia de amar.

 

 

 

 

 

 

 

 

A lógica da jura negada

 

Ao pôr-me a pensar no ato pérfido, não me vem outra imagem em mente senão a de um fariseu, de um calhorda, ao qual não se deve ter com a mais pífia das confianças. Negar (ou seria melhor trair? À escolha!) a fé jurada no íntimo dos sentimentos, demonstra aspectos aquém do egoísmo, do eu com o eu, apenas. Atitude não meritória. E tu, leitor de cabeceira, não tenha opinião antagônica, pois isso só comprovará seu insano instinto de "ver em suas mãos o sangue de seu irmão".

 

Caim não o teria feito, caso houvesse sido reconhecido aos olhos do Senhor. E Esse desistiu da perfeição na sua criação, simplesmente pela comprovação da incapacidade na realização de tal fato. "O homem é o lobo do próprio homem". Sim, é necessário aplicá-la aqui. Confesso, até, que me apresento em meio à corja humana, afinal somos únicos nesse ramo. Nossos instintos são os mesmos, variando unicamente na intensidade em que vem à baila de ser para ser.

 

Fomos criados, nós humanos, por um descuido e desequilíbrio no psicológico supremo — não que eu creia na veracidade da Teoria da criação divina das espécies, mas somente pelo lado poético —, por meio de um método não programado. De supetão! No entanto, é evidente que meu querido leitor do entardecer não se ver digno de castigo quando pratica atrocidades contra seu companheiro. Eu sei! Não precisa tentar se redimir. A tudo nosso amigo inseparável e traidor dos traidores, que nos leva nossa pele, nossa carne, nossos sonhos, nossos suspiros, nossos prazeres, nossas angústias, dará sua paga. Isso é normal. Recuperar o tempo desperdiçado?! Ah, é inútil! Ele mesmo se encarrega pôr sob terra o que está a suas costas. Talvez esse seja o lado positivo.

 

Porém, há uma expressão profunda do ser que, uma vez deslizada das mãos, o tempo é incapaz de deixar aos rumos do vento. Ela é tão lógica e única que não me estimula sua explicitação. Tu, leitor das minúcias, certamente saberá a que me refiro. Infelizmente não encontramos a lealdade existente entre Lotário e Anselmo. Para o mal, és que o encanto pela nossa elevação da espécie, junto à impertinência, rompe com esses laços de fidelidade. Semelhante ocorreu com Aleca¹. Por experiência, não há sensação igual. É, complexamente, horrível.

 

Agora, o pudor lhe enche a alma. Indubitavelmente, vez praticado o ato da desconfiguração de "Os dois irmãos", é inútil tentar restituir a situação de outrora, ao menos de intróito à cisão. Há de se ter paciência, quando a deslealdade for desprovida de extrema gravidade para as considerações. Porém, quando a alma se encontra fervorosa por tal situação, há de se pôr as imensuráveis tentativas nos betumes do tempo. Qualquer que seja a explicação ou o feitio para reverter à derrama do sangue sobre o espírito transforma-se em pinheiros ao deserto.

 

O homem, por natureza, é subversivo e, por conseguinte, subserviente aos seus instintos primitivos. No entanto, é imprescindível não se deixar tomar por essas sensações de atos efêmeros. É o cigarro da dignidade. A cada trago é consumido pouco a pouco; mas o desejo de sugá-lo para tê-lo dentro de si desespera, faz sofrer o imaterial, transtorna, estimula o "parar" e o "pensar", apodrece nosso pomar dos pomares, abarrota de sofrimento as inebriantes canções. O degelo de calotas a partir do sopro ocorreria com um labor diminuto, quando comparado à restituição da jura de alma.

 

Dissecar o método de agir, de sorte a prender os erros numa minúscula caixa desprovida de luminosidade — melhor seria reter os não erros, posto a natureza pervertida do ser, e seria impossível com um reduzido quadrilátero —, seria, concomitantemente, uma quimera, já que tal proeza não pode ser alcançada pela mais reles das raças de seres vivos, perfeita na resolução dos impasses humanos, e um ato desnecessário.

 

A verdade é que nunca haverá trégua entre o homem e a sua natureza da desconstrução e entre o homem e o seu semelhante. Atos pérfidos sempre serão cometidos, por mais decepcionante isso seja. Alguns jogados por terra no correr do tempo; outros, jamais aos ventos: eternizam-se. Perdoáveis ou imperdoáveis, mas ambos perenes dores na alma e no espírito. São os praticáveis, impraticáveis somente no nosso mundo ilusório.

 

¹Aleca é um neologismo. É a mistura de dois nomes próprios.

 

(imagens ©resurgere / medioimages /photodisc)

 

 

 

 

 

 

Alexandre J. Nobre. Escreve crônicas, poemas, prosas poéticas e é estudante de Letras na Universidade Federal de Alagoas.